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14 de julho de 2014

Podemos ser melhores

Cláudia Laitano: O sublime e o trágico

Yamandu torna universal nossa pequena e remota aldeia. Como um Jorge Luis Borges de violão e alpargatas, é do tamanho do mundo, mas tão gaúcho quanto é possível ser

O Theatro São Pedro estava cheio, mas era para estar lotado, com cadeiras extras espalhadas pelos corredores e gente disputando um naco de vista em todos os camarotes. O espetáculo que o violonista Yamandu Costa apresentou em Porto Alegre na semana passada é daqueles que a cidade não vê todo dia. Um virtuose no auge da carreira – à vontade com a plateia, com o instrumento, com os parceiros no palco (os impecáveis Guto Wirtti e Arthur Bonilla), com o êxtase da criação.
Porto Alegre foi apenas uma escala na rotina de um cidadão do mundo. Nos primeiros dias de dezembro, Yamandu se apresenta na Salle Pleyel, acompanhado da Orchestre de Paris, e em seguida embarca para Telaviv – e depois, sabe-se lá pra onde. Nada de excepcional em se tratando de um instrumentista com uma carreira internacional estabelecida e em ascensão. Sua música bebe dessa tropeada mundo afora, como não poderia deixar de ser, mas é de alma inequivocamente telúrica, pampiana. Por aqui, temos o privilégio de ouvir Yamandu não apenas como o grande músico que ele é, mas como um intérprete de uma sonoridade que nos é familiar e essencial. Sua arte nos reflete e nos transcende, propondo uma versão mais sublime daquele sentimento muita vezes barateado de regionalismo. Somos melhores, mais intensos, mais profundos nesse espelho musical que ele nos oferece.
Yamandu torna universal nossa pequena e remota aldeia. Como um Jorge Luis Borges de violão e alpargatas, é do tamanho do mundo, mas tão gaúcho quanto é possível ser.
Se a arte é capaz de expressar a melhor parte de um lugar, de uma época, de uma cultura, onde deveríamos procurar a pior tradução de nós mesmos? Onde estaria condensado o que não conseguimos resolver como nação – nosso fracasso, nossa culpa, nossa vergonha? O Brasil é pródigo em metáforas de falência estrutural, mas talvez nenhuma seja tão eloquente quanto o trânsito, a guerra que mata mais de 40 mil pessoas por ano no país.
O trânsito espelha nossa incapacidade para fiscalizar e para punir, para respeitar leis, para construir e legitimar o espaço público, para valorizar a igualdade acima da liberdade. Acima de tudo, o trânsito reflete nossa irremediável dificuldade para reconhecer o outro. "Os outros são invisíveis no Brasil. Você não é treinado em casa nem nas escolas para ver o outro como colega, como um sujeito que tem os mesmos direitos de usufruir o espaço de todos. Para nós, é o contrário: o espaço de todos pertence a quem ocupar esse espaço primeiro, com mais agressividade", define o antropólogo Roberto da Matta.
Amanhã, terceiro domingo do mês de novembro, é o dia dedicado à memória das vítimas da violência no trânsito. Uma data criada para lembrar todos os que foram vítimas da imprudência, da estrada esburacada, do segundo copo de bebida, da mensagem de texto, da velocidade, da arrogância, da impunidade.
O trânsito pode ser muito melhor do que é. O Brasil e os brasileiros também.
2013

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