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18 de novembro de 2014

Sarney - um irrelevante escritor - criou essa violência : a reforma ortográfica


Sinto-me tomada por uma indecisão: devo escrever como o Sarney quer que eu escreva? Para os desavisados, não custa lembrar que estão em vigor as novas regras de ortografia para os países que falam a língua portuguesa, o que inclui o Brasil. O feito é resultado das maquinações cerebrais de ninguém menos que José Sarney, que, desde a década de 1990, vinha tentando emplacar a adesão do Brasil à reforma ortográfica.

Grandes intelectuais, escritores e estudiosos brasileiros já se manifestaram contra a reforma baseados em inúmeros argumentos. A maior violência da reforma, segundo penso, reside no fato de que ela não considera a língua um elemento de coesão nacional, mas um produto de barganha comercial e geopolítica típico do pensamento pré-inteligível da maioria de nossos políticos.

As mudanças parecem simples, mas causarão um estrago de grandes proporções. A reforma de 1971, proposta por Jarbas Passarinho, é um exemplo claro de que três ou quatro gerações não são suficientes para assimilar as alterações na forma escrita da língua. Palavras como “idéia” e “azaléia”, desde o primeiro dia do ano de 2009, perderam o acento agudo e passaram a ser grafadas “ideia” e “azaleia”. Mas e as palavras “meia” e “aldeia” – dirão alguns –, que nunca tiveram acento? Ora, elas continuarão sem acento, só não sei que mágica os professores farão para ensinar a uma criança que está sendo alfabetizada que “ideia” e “aldeia”, embora se pareçam na grafia, distinguem-se na sonoridade pela pronúncia, já que era o acento que cumpria essa função distintiva.

Há vários estudiosos da língua que também aludem à visualidade do texto escrito como argumento central para o repúdio ao acordo ortográfico. Isso quer dizer que inúmeras palavras estão memorizadas em nosso repertório de signos sem que seja necessário sabermos as regras ortográficas ao pé da letra. Isso é muito comum em pessoas que têm o hábito da leitura e que aprendem o código escrito da língua pela visualidade do texto.

O que é mais grosseiro neste acordo é a alegação que sustentou suas bases políticas, segundo as quais haverá maior unidade cultural entre os países falantes da língua portuguesa. Não precisa pensar muito para constatar que isso é um descalabro. Alguém é capaz de lembrar qual foi o último romance que leu de um autor africano? (Mia Couto não vale, porque ele está na moda.) Será que depois deste acordo teremos uma avalanche de autores de Cabo Verde e do Timor Leste nas bibliotecas de nossas escolas? Trocaremos uma pós-graduação na França, nos Estados Unidos ou na Alemanha por uma na Guiné Bissau, já que agora estamos – legalmente, diga-se de passagem – irmanados aos africanos falantes do português?

José Sarney é mais um sujeito frívolo que bate continência à mistificação globalizante que prega que estamos todos num mesmo caldeirão cultural planetário. Contudo, são ingênuos os que pensam que a língua portuguesa ficará mais fácil sem alguns acentos ou com as novas regras de hifenização; pelo contrário, ela terá uma complexidade a mais, que se refere ao desaprendizado da grafia antiga para a assimilação da grafia nova. Não teria sido mais simples, ao invés da reforma, investir dinheiro público em programas de qualificação do ensino da ortografia da língua portuguesa escrita no Brasil até 2008?

Como não sou um sujeito muito integrado ao legalismo que tem a pretensão de comandar nossas vidas, sugiro aos meus leitores que continuem escrevendo como sempre escreveram. A língua não tem certo ou errado, pois ela é uma construção social totalmente arbitrária; se não é fruto de violências colonialistas, é fruto de dominação simbólica. E digo isso baseado num argumento muito simples: quem constrói a língua são os seus usuários e não a lei. Aliás, a própria lei tem como matriz o texto escrito, ou seja, ela é um duplo absurdo. A língua não é um fato primordial que nasce com o sujeito, visto que ela é aprendida, assim como se aprende a comer usando talheres. Tanto uma prática quanto a outra envolvem decisões que estão na base do poder legitimador dos estratos sociais mais fortes sobre os mais fracos. Comer usando as mãos, portanto, não é certo nem errado, é apenas uma forma de comer dentre tantas outras possíveis.

No âmbito desta patuscada legalista, uma coisa é certa. Os leitores brasileiros, portugueses e africanos podem ficar sossegados, pois os livros de José Sarney (que também é escritor – pasmem!) não serão encontrados em nenhuma livraria em edições comemorativas ao novo acordo ortográfico. Isso porque sua obra é tão irrelevante para a cultura nacional, que continuará eternamente empoeirada em meio aos tremas e acentos que ele tanto detesta. O máximo que seu intelecto renderá é um busto no átrio das personalidades mais descartáveis da história brasileira.

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