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21 de dezembro de 2018

ANÁLISE


No último domingo, dia 16 de dezembro, começou a ser aplicada a segunda fase do vestibular 2019 da UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – realizado pela VUNESP – Fundação para o Vestibular da Universidade Estadual Paulista.
No segundo dia de provas da segunda fase, última segunda-feira, foram aplicadas as provas dissertativas de conhecimentos específicos e de redação, alvo da análise do texto de hoje. A UNESP exige a produção de uma dissertação-argumentativa e, neste ano, o tema da proposta de redação foi “Compro, logo existo?”.
O tema desta proposta de redação é uma alusão clara à frase “Penso, logo existo” do filósofo francês René Descartes que a escreveu em seu livro Discurso do Método, em 1637, em francês “Je pense, donc je suis“. O ideal é que o candidato, ao ler o tema, se lembrasse imediatamente da frase de Descartes, que trata da existência humana como consequência da existência do pensamento e do raciocínio lógico, diferentemente dos animais, por exemplo, que são movidos pelo instinto.
Neste caso, podemos inferir que a proposta de redação trata, essencialmente, da substituição da geração do pensamento pela geração do consumo; a questão do ser foi substituída pela questão do ter. Portanto, a existência humana, agora, é consequência do consumo e do ter e não mais do pensamento e do raciocínio.
A coletânea textual da proposta de redação contém quatro textos: uma história em quadrinhos de Quino (1932), cartunista argentino criador da Mafalda; uma tirinha do cartunista brasileiro André Dahmer (1974); uma poesia de José Paulo Paes (1926 – 1998) e um excerto de um livro de Zygmunt Bauman, filósofo e sociólogo polonês (1925-2017).

Este é Manolito, um dos amigos de escola de Mafalda; seu pai é dono de um armazém e, por isso, as duas crianças discutem, com frequência, sobre consumo, já que para Manolito tudo se resume da relação de venda e compra. O ideal era que o candidato tivesse este conhecimento prévio, pois assim entenderia mais facilmente a fala do menino na história em quadrinho selecionada.
Na fala de Manolito, ele aborda justamente o “ser” e o “ter”, afirmando que “quem não tem nem sequer é”, ou seja, quem não tem nem existe, estabelecendo uma relação direta com o tema da proposta de redação. Para ele, a pessoa que não consome nem existe e, portanto, nada vale. Como ele é filho de um comerciante, pode estar representando esta camada da sociedade e as pessoas que realmente acreditam no capitalismo como meio de obter lucros por meio do consumo.

A tirinha acima se passa num local de trabalho onde dois colegas conversam. O primeiro afirma que o outro, Cláudio, só pensa em dinheiro e o questiona sobre quando foi a última vez que este fez amor. Cláudio responda que, com amor, não se compra iates nem carros, o que para o outro é uma perda da noção de tudo, e Cláudio retruca dizendo que não se compra motos com noção, pergunta dúbia, já que pode ser uma crítica à falta de segurança das motocicletas.
Esta tirinha é uma crítica às pessoas que só pensam em dinheiro e em consumir bens materiais e deixam de lado as relações interpessoais e afetivas, já que se só pensam em dinheiro, consequentemente só pensam em trabalho e deixam de sair, se divertir, se relacionar com pessoas afetivamente etc. Para essas pessoas, elas só existem e realizam coisas por meio do dinheiro que usam para comprar bens materiais, inclusive de luxo, como um iate.

O poema de José Paulo Paes critica o consumo e, possivelmente, o consumismo traçando uma relação direta, por meio de metáforas, entre os shoppings (grandes centros comerciais) e o inferno, local no qual, segundo a crença cristã (igrejas católica e evangélica, por exemplo) as almas pagam seus pecados cometidos em vida.
O poema é, inclusive, dedicado aos shoppings, colocando-o como um verdadeiro inferno no qual os clientes, como almas penadas, vagam sem rumo pelo mundo do consumo; cada loja seria mais um prego na cruz de cada um de seus frequentadores, uma alusão direta à crucificação. E estas almas penadas vagam, sem perdão, à espera não da salvação para o reino do céu, mas sim da grande liquidação.
Na terceira estrofe, mais especificamente, há uma crítica ao consumismo, isto é, ao consumo sem necessidade: “por mais que compremos, estamos sempre nus“. Por mais que tenhamos roupas, sempre não temos uma roupa específica para determinada ocasião e daí compramos mais roupas, mais sapatos, mais acessórios etc.

Bauman ficou muito conhecido na área acadêmica das ciências humanas devido ao seu conceito de liquidez das relações humanas; para o autor, a tecnologia, a rapidez da circulação de informações e a contemporaneidade transformaram as relações humanas em relações líquidas, que correm como água corrente e, assim, acabam muito rápido. Somos substituídos rapidamente em namoros, casamentos, em relações familiares e em relações de trabalho e o mesmo acontece com o consumo: já que somos substituídos facilmente, também substituímos pessoas e objetos facilmente, sendo consumidores acima de tudo.
Curamos um mau dia comprando alguma coisa supérflua, tratando as lojas como terapeutas ou farmácias (aliás, como consumimos remédios, não?), comprando por impulso sem pensar na necessidade e sem pensar, muitas vezes, se podemos pagar tranquilamente. Nos sentimos completos quando compramos, não quando vivemos.
Deste modo, trata-se de uma coletânea muito bem planejada e pensada, pois todos os textos vão na direção do tema, pois abordam o consumo como estilo de vida por meio da crítica, da poesia e da filosofia e sociologia.
Parece um tema fácil, já que é muito discutido nas escolas e na sociedade em geral, mas por isso mesmo pode ser um tema de difícil escrita, pois o candidato pode ter tido várias ideias e, por isso mesmo, dificuldade em focar no recorte temático da proposta que era, justamente, a substituição da geração do pensamento pela geração do consumo.
Além disso, o tema foi formulado em uma pergunta, portanto o candidato deveria respondê-la, dizendo se concorda ou discorda com a substituição da geração do pensamento pela de consumo. Seguindo o recorte temático de crítica ao consumo e ao consumismo, pensamos que a dissertação-argumentativa deveria seguir a crítica da proposta e discordar da pergunta.

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