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24 de outubro de 2015

Apenas um comentário

Há alguns anos tenho sido, como qualquer universitário, um mero espectador quando o assunto são as provas do Enem. Acompanhando de longe e participando da recepção dos alunos que entram no meu curso todos os semestres, não é difícil reparar o impacto da massificação provocada pelo exame, que substituiu vestibulares em diversas universidades por uma única prova nacional.
Neste ano, porém, minha relação com a prova mudou. Por querer manter aberta a opção de me transferir de universidade, decidi me inscrever no exame, mesmo faltando meros 2 semestres para me graduar. Como em todos os anos anteriores, minha mente apenas associava a prova a vídeos engraçados sobre adolescentes que perdem a hora, ou dois dias inteiros de memes e repercussões no twitter, além de algumas reclamações perdidas sobre o teor ideológico do exame, as quais nunca parei para dar atenção.
Como você deve imaginar, cheguei ao local da prova com mais de uma hora de antecedência (me precavendo de me tornar um viral no youtube ou ser entrevistado por alguns desses jornalistas que ganham a vida expondo estudantes desesperados). Durante esses longos minutos, pude dedicar algum tempo discutindo com alguns dos demais estudantes presentes na fila. A experiência de conhecer outras pessoas em momentos assim, de quase sempre profunda apreensão – como, a propósito, eu possivelmente estava quando entrei na faculdade – é bastante reveladora. É possível perceber, por exemplo, que professores de cursinho dificilmente saem do clichê decoreba que marca a educação brasileira. Felizmente nenhum jovem com quem conversei pretendia cursar Economia, como eu. Sinal de que o futuro do país ainda possui alguma esperança.
Algumas curiosidades, no entanto, não pude ignorar. Um dos estudantes me alertou, e aos demais na roda de conversa, que provas de filosofia geralmente são “fáceis”, e que “toda vez que lermos o termo luta de classes, devemos marcar a opção Karl Marx”. O jovem, que é estudante de física no primeiro semestre, pareceu de uma sinceridade avassaladora – o que certamente revela mais sobre seus professores do que sobre ele mesmo. Outros estudantes deram dicas sobre a prova de física, além de algumas canções que ensinavam a decorar fórmulas aparentemente importantes.
Entrar para fazer a prova foi uma experiência igualmente curiosa. Ainda acostumado com as provas na faculdade, confesso que demorei alguns instantes para assimilar a ideia de que alguém de fato precisasse de 7 pacotes de biscoito, um suco de garrafa e 2 garrafas de água para fazer uma prova de 4 horas de duração – mas essa é outra discussão. Pequei por excesso de precaução, do início ao fim, chegando muito cedo e esperando ao todo quase 3 horas para fazer a prova. Tudo aparentemente compensado ao ler a primeira questão do caderno branco, um dos 4 cadernos disponíveis.
prova2
Logo na primeira questão me deparo com um trecho citando o artigo “Segundo sexo” de Simone de Beauvoir, que dizia.
“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino. Somente a mediação de outrem pode constituir um indivíduo como um Outro. Enquanto existe para si, a criança não pode apreender-se como sexualmente diferenciada…”
“Ok, primeira questão apenas, nada demais, Felippe Hermes”, pensei comigo. Meus amigos certamente exageram quanto à questão ideológica do exame. Citar uma pensadora feminista importante não é algo reprovável ou grave. É do jogo, vamos lá. Prossegui com a prova, como de costume, reparando nas fontes utilizadas e nos autores citados.
Dentre as diversas reportagens de jornais sobre assuntos de relevância duvidosa como as técnicas de gotejamento na lavoura, o teor ideológico insistia em permanecer. Críticas ao agronegócio, aos alimentos industrializados e as inúmeras referências às mudanças climáticas foram constantes. Neste momento, deixei para repetir o “nada demais” a cada três questões, pois se o fizesse a cada pergunta acabaria me traindo com a questão seguinte, que teimava em ser mais específica e enviesada ainda.  
Provavelmente o ponto auge da prova tenha sido o momento de definir a ideia central das obras de Paulo Freire e um texto do Movimento Sem-Terra. Graças aos nomes a cada dia mais estranhos como se qualificam as disciplinas clássicas de História, Geografia, Filosofia e Língua Portuguesa, que hoje se encontram todas emboladas em “ciências humanas e suas tecnologias”, confesso que demorei a perceber que havia de fato uma separação entre cada disciplina e não apenas uma prova única de filosofia segundo o MEC. Não houve sequer uma citação à crise econômica ou política pela qual passa o país. Quem lê a prova sai com a impressão de que a crise de 2008 segue um assunto mais relevante para a maioria dos estudantes do que a realidade atual do país.
Ao voltar para a faculdade, segunda-feira, provavelmente devo apenas me lembrar que minha dignidade ficou perdida naquela sala, junto ao cartão resposta, onde em certo momento fui obrigado a marcar que “o desemprego é uma consequência prática da globalização”. No cômputo geral, ainda estou em dúvida se passo a respeitar mais os calouros de Economia por terem resistido a um ano de massificação de ideias capengas, ou se a lição do dia é que “felizmente” (com todas as aspas do mundo) nossas crianças mal aprendem português e matemática. De fato, se fosse para elas aprenderem o que cobra o Enem, o melhor caminho ainda é ser ignorante.

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