Proposta de redação
Na verdade, durante a maior parte do século XX, os estádios eram lugares onde os executivos empresariais sentavam-se lado a lado com os operários, todo mundo entrava nas mesmas filas para comprar sanduíches e cerveja, e ricos e pobres igualmente se molhavam se chovesse. Nas últimas décadas, contudo, isso está mudando. O advento de camarotes especiais, em geral, acima do campo, separam os abastados e privilegiados das pessoas comuns nas arquibancadas mais embaixo. (…) O desaparecimento do convívio entre classes sociais diferentes, outrora vivenciado nos estádios, representa uma perda não só para os que olham de baixo para cima, mas também para os que olham de cima para baixo.Os estádios são um caso exemplar, mas não único. Algo semelhante vem acontecendo na sociedade americana como um todo, assim como em outros países. Numa época de crescente desigualdade, a “camarotização” de tudo significa que as pessoas abastadas e as de poucos recursos levam vidas cada vez mais separadas. Vivemos, trabalhamos, compramos e nos distraímos em lugares diferentes. Nossos filhos vão a escolas diferentes. Estamos falando de uma espécie de “camarotização” da vida social. Não é bom para a democracia nem sequer é uma maneira satisfatória de levar a vida.Democracia não quer dizer igualdade perfeita, mas de fato exige que os cidadãos compartilhem uma vida comum. O importante é que pessoas de contextos e posições sociais diferentes encontrem-se e convivam na vida cotidiana, pois é assim que aprendemos a negociar e a respeitar as diferenças ao cuidar do bem comum.Michael J. Sandel. Professor da Universidade Harvard. O que o dinheiro não compra. AdaptadoComentário do Prof. Michael J. Sandel referente à afirmação de que, no Brasil, se teria produzido uma sociedade ainda mais segregada do que a norte-americana.
O maior erro é pensar que serviços públicos são apenas para quem não pode pagar por coisa melhor. Esse é o início da destruição da ideia do bem comum. Parques, praças e transporte público precisam ser tão bons a ponto de que todos queiram usá-los, até os mais ricos. Se a escola pública é boa, quem pode pagar uma particular vai preferir que seu filho fique na pública, e assim teremos uma base política para defender a qualidade da escola pública. Seria uma tragédia se nossos espaços públicos fossem shopping centers, algo que acontece em vários países, não só no Brasil. Nossa identidade ali é de consumidor, não de cidadão.Entrevista. Folha de S. Paulo, 28/04/2014. Adaptado.[No Brasil, com o aumento da presença de classes populares em centros de compras, aeroportos, lugares turísticos etc., é crescente a tendência dos mais ricos a segregar-se em espaços exclusivos, que marquem sua distinção e superioridade.] (…) Pode ser que o fenômeno “camarotização”, isto é, a separação física entre classes sociais, prospere para muitos outros setores. De repente, os supermercados poderão ter ala VIP, com entrada independente, cuja acessibilidade, tacitamente, seja decidida pelo limite do cartão de crédito.Renato de P. Pereira. www.gazetadigital.com.br, 06/05/2014. [Resumido] e adaptado.Até os anos de 1960, a escola pública que eu conheci, embora existisse em menor número, tinha boa qualidade e era um espaço animado de convívio de classes sociais diferentes. Aprendíamos muito, uns com os outros, sobre nossas diferentes experiências de vida, mas, em geral, nos sentíamos pertencentes a uma só sociedade, a um mesmo país e a uma mesma cultura, que era de todos. Por isso, acreditávamos que teríamos, também, um futuro em comum. Vejo com tristeza que hoje se estabeleceu o contrário: as escolas passaram a segregar os diferentes estratos sociais. Acho que a perda cultural foi imensa e as consequências, para a vida social, desastrosas.Trecho do testemunho de um professor universitário sobre a Escola Fundamental e Média em que estudou.Os três primeiros textos aqui reproduzidos referem-se à “camarotização” da sociedade – nome dado à tendência a manter segregados os diferentes estratos sociais. Em contraponto, encontra-se também reproduzido um testemunho, no qual se recupera a experiência de um período em que, no Brasil, a tendência era outra.Tendo em conta as sugestões desses textos, além de outras informações que julgue relevantes, redija uma dissertação em prosa, na qual você exponha seu ponto de vista sobre o tema “Camarotização” da sociedade brasileira: a segregação das classes sociais e a democracia.
Instruções:
- A redação deve ser uma dissertação, escrita de acordo com a norma padrão da língua portuguesa.
- Escreva, no mínimo, 20 linhas, com letra legível. Não ultrapasse o espaço de 30 linhas da folha de redação.
- Dê um título a sua redação.
O tema da proposta de redação do vestibular 2015 da USP chamou muito a atenção não só dos candidatos, mas também da mídia, já que traz em sua frase de comando um neologismo: “camarotização”. Este termo é derivado da palavra “camarote” que designa uma área separada, normalmente fechada, das demais áreas de um lugar, como um teatro ou uma boate, por exemplo. Sabe-se que o camarote é a área mais cara de um lugar no qual os frequentadores ficam mais confortáveis e têm mais privacidade, além de obterem mordomias como comidas e bebidas, tudo incluso em um alto preço.
A “camarotização” é algo bem comum e corriqueiro em nosso dia a dia. Ao compramos ingressos para um show, para uma peça de teatro, para um jogo de futebol ou qualquer outro evento nos deparamos com opções mais caras (áreas VIP2 e camarotes) e outras mais baratas. É como comprar passagens aéreas: há a opção da primeira classe, da classe executiva e da econômica, com assentos mais apertados e até onde a comida é cobrada a parte por algumas empresas.
Porém, nunca ou pouco pensamos que este fenômeno segrega as pessoas, já que elas próprias separam-se das outras ao ficarem em uma área VIP ou em um camarote. Em um teatro, por exemplo, há assentos melhores para se assistir à peça, mas eles são mais caros do que os demais e assim, por meio do dinheiro, as pessoas compram lugares melhores e o direito de ver a peça de um melhor ângulo.
É o caso, só que em um estádio de futebol, exemplificado pelo primeiro texto da coletânea. Antigamente, pessoas de diferentes classes sociais compartilhavam do mesmo espaço e dos mesmos problemas, como a chuva, por exemplo, ao irem assistir um jogo de futebol do seu time. Hoje, porém, a arquibancada geral é o local das torcidas organizadas, das pessoas mais humildes e os camarotes são destinados aos mais abastados.
O segundo texto já relaciona este fenômeno ao dia a dia ao afirmar, com toda a razão, que há separação e diferenças entre as classes sociais em setores como transporte público, educação e saúde, já que há a impressão de que os serviços públicos são destinados à camada mais pobre da população. Obviamente que há a questão do sucateamento destes serviços; o ideal é que todos usufruíssem das escolas públicas, do transporte público e dos hospitais públicos por sua qualidade.
Ao citar os shoppings, o autor nos faz lembrar de outro fenômeno, o dos rolezinhos, já que estes eram realizados nos shoppings com o intuito de promover uma inclusão social e mercadológica e muitos empresários reagiram expulsando e selecionando as pessoas que queriam entrar nas dependências de seus centros de comércio.
O terceiro texto da coletânea, por sua vez, amplia a reflexão do segundo texto e projeta um futuro no qual haverá esta segregação até nos supermercados, já que as classes populares estão usufruindo mais de espaços antes dominados pelas classes mais abastadas, como os aeroportos, por exemplo. Esta citação noa faz lembrar do caso de um homem que estava usando bermuda e regata na sala de espera de um aeroporto brasileiro e que foi ridicularizado nas redes sociais por uma professora universitária que o fotografou e que publicou a foto a fim de denegrir sua imagem devido a sua vestimenta.
Por fim, o quarto e último texto da coletânea faz um contraponto relatando como era antigamente, quando nas escolas públicas todos conviviam e tinham as mesmas experiências.
Apesar de vivermos em uma democracia, a segregação social é algo comum que ocorre sem que percebamos; por vezes, nós próprios nos separamos ao não irmos em determinado bairro, ao comprarmos um lugar na área VIP de um show ou em um camarote em uma balada a fim de ter mais privilégios individuais. Por meio da segregação espacial a sociedade brasileira cria sortilégios. Em decorrência dos rolezinhos, do Rei do Camarote e das remoções impostas pelas obras da Copa do Mundo, o tema é pertinente.
O mais interessante desta proposta é ela vir de onde veio: da USP. Só neste último ano, a porcentagem de candidatos oriundos das escolas públicas, no vestibular da Fuvest, caiu para 32%. O vestibular mais elitista do país, assim, pode ser considerado um camarote universitário no qual poucos têm a chance de adentrar, apesar de ter aberto este espaço a uma reflexão tão importante.
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