A sociedade brasileira é intolerante em relação a raça?
Nos dias atuais, há uma grande discussão sobre o posicionamento da sociedade em relação aos grupos étnico-raciais que não condizem a maioria branca (50% da população do país considera-se branca).Alguns falam que há intolerância racial no Brasil, outros que a discriminação contra pessoas "de cor" não passa de medo (no contexto da violência urbana). Mas para analisarmos tal assunto a fundo, primeiro, devemos responder uma pergunta: Se considerarmos a identidade brasileira como uma só (respeitando ,obviamente, as diferenças regionais, mas imaginando o brasileiro como o mesmo fruto étnico-cultural desses anos todos de formação nacional, como pensou Darcy Ribeiro), podemos afirmar que ,na formação de tal identidade étnico-nacional, houveram fatores que contribuíssem decididamente para a intolerância racial?
A resposta para essa pergunta é não. Se olharmos para o povo brasileiro como um todo, proveniente dos mesmos grupos étnicos preexistentes (negro, índio e europeu), perceberemos que apesar de algumas restrições iniciais (como o pensamento de superioridade européia ou o fato de que parte dos africanos iniciais só se identificarem etnicamente com pessoas de sua tribo original) que simplesmente, com o passar do tempo, deixaram de ser influências para a formação étnica do brasileiro, o povo brasileiro não apresenta mecanismos de preconceito racial.
A análise que faremos nesse ensaio tomará por pressuposto que o povo brasileiro atual é fruto (guardadas as devidas proporções no tocante a maior ou menor influência dos grupos de origem do povo brasileiro) dos povos indígenas, dos portugueses e dos africanos. Analisaremos se alguns desses povos carregavam (ou passaram a carregar ao longo do tempo no território brasileiro) algum traço de preconceito (dos dois tipos de preconceito que apresentaremos a seguir). O primeiro tipo de preconceito que trataremos é o preconceito de contacto. Tal preconceito dá-se quando um povo, por algum motivo, como raiva histórica ou algum tipo de crença, passa a evitar contato com outro povo. Tal impedimento de contato pode dá-se de várias formas, como a resistência a criação de laços familiares ou afetivos com o outro povo, a total intolerância e inimizade ou qualquer outro ato que incentive à segregação racial. O segundo tipo de preconceito que analisaremos é o preconceito de “escalas”. Tal preconceito, por si só, não evita contato, nem inspira raiva. Ele é apenas a crença que um povo é superior ao outro (ou parte dos dois, quando o critério analisado é de caráter objetivo, como desenvolvimento tecnológico, por exemplo, ou por parte de apenas um, quando o critério é de caráter subjetivo, como religião, por exemplo). Tal preconceito, porém, pode ser acompanhado de um preconceito de contato ou evoluir para esse estágio ao longo do tempo. Analizaremos, portanto, as matrizes étnicas que competiram para formação do Brasil e verificaremos se elas apresentaram (ou apresentam) algum dos preconceitos citados.
Nós descendemos dos portugueses e tal povo, durante boa parte da história brasileira, exerceu grande influência na moral e nos costumes brasileiros (tanto na influencia direta desse grupo na sociedade brasileira, que durou muito tempo, mas também pela grande influência que causaram nos seus filhos -os neobrasileiros- os quais foram o verdadeiro embrião do brasileiro atual). Gilberto Freyre nos confirma que os portugueses, por causa das inúmeras invasões mouras a seu território, tornaram-se um povo naturalmente racialmente mestiços. Essa miscigenação os tornou fenotipicamente muito heterogêneos. Para se reconhecerem, então, como um povo, os portugueses passaram a se reconhecer, não mais por suas características físicas, mais sim por sua religião. Ao contrário de povos os ingleses e os franceses, por exemplo, que consideravam seus semelhantes as pessoas com eles. Como a influência religiosa do catolicismo se tornou massiva na maioria daqueles de habitavam o Brasil, tal fator de intolerância nunca chegou nem mesmo a existir no Brasil. Estruturalmente, então, por parte do povo colonizador, não existiram mecanismos que incentivassem a a segregação racial no Brasil. Tal comportamento aconteceu ,por exemplo, nos EUA, em que seus colonizadores foram os ingleses e os franceses(que, como dito anteriormente, apresentavam resistência à mistura com outras raças). Esse país apresenta até hoje(mesmo com as lutas dos negros( mesmo com as lutas dos negro que venceram contra a dominação branca) uma clara segregação racial.
Os índios também eram um povo susceptível à miscigenação. Muitas vezes isso era até incentivado, pois algumas tribos pensavam que os portugueses eram deuses. O cunhadismo (fenômeno no qual , no começo do período colonial, um branco poderia se "amigar" com muitas mulheres indígenas ao mesmo tempo, sem nenhum problema) é grande prova disso.
Outra parcela da população brasileira que se tornou, cada vez mais influente, foi aquela que se reconheceu como neobrasileiros. Tal grupo se estruturou nos séculos XVI e XVII, principalmente por mamelucos, pois sendo filhos de portugueses com índios, não tinham poderiam se identificar-se etnicamente nem com portugueses nem com os índios, necessitando, assim, criar uma identidade étnico-nacional. Tal grupo foi, talvez, um dos mais influentes na formação sociológica do brasileiro de hoje.Tal identidade étnica assimilou fatores indígenas e europeus, mas nenhum que influenciassem a intolerância racial ou a hierarquia de raças, pois isso afetaria a eles mesmo, pois eram naturalmente um povo miscigenado.
Já o negro vindo da África, em um primeiro momento, só reconheciam como semelhante o povo de sua própria tribo. Mas esse negro, segundo Darcy Ribeiro, logo se desculturou em decorrência do trabalho escravo, ficando mais "mole", flexível. Já seus descendentes precisavam de uma identidade ética a se encaixarem. Decidiram escolher a identidade étnica neobrasileira em formação, tanto por essa identidade ser bastante flexível a que tipo físico e a que precedência cultural seus participantes poderiam ser (uma das poucas exigências eram a de considerar-se católicos) , mas também por não poderem mais considerar-se de outra matriz cultural "pura" dados a grande miscigenação que havia nas casas de engenho( tanto de negras com senhores brancos, mas também de negros de diferentes tribos).
O segundo ponto para analisarmos se existe, sociologicamente, no Brasil a intolerância racial, é se existiu, na história brasileira, ideais de superioridade de grupos. É praticamente inegável que, em um primeiro momento, houve uma nítida hierarquização racial. Os portugueses, certamente, se consideravam superiores aos negros e aos ameríndios. Isso ocorria tanto pela religião que professavam( que consideravam-na como muito superior às demais) , também pela nítida superioridade tecnológica que os lusos haviam alcançado e pelos valores sociais que os índios tinham (muito diferente do dos europeus), os quais faziam os europeus considerarem estes como selvagens. Mas com o passar do tempo, essa tal "superioridade" foi se extinguindo. Primeiro, porque a religião dos portugueses estava sendo praticada por quase toda população brasileira. Segundo porque com o passar do tempo, já não mais existia, no Brasil, a identidade lusa. Muitos portugueses e seus descendentes, num primeiro momento, até conseguiram manter a suas identidades étnicas como de europeus (diferindo-se, então, dos índios, mamelucos e negros). Mas com o passar do tempo, ao verem-se cada vez mais miscigenados, começando a agir e pensar como o povo neobrasileiro (pois, afinal de contas, estes eram seus filhos), os que se autoproclamavam europeus passaram a ,cada vez mais, se considerarem verdadeiros brasileiros(em detrimento da identidade, portuguesa), igualando-se, então, aos povos antes ditos inferiores e ,por esse motivo, não podendo mais intolerá-los por acharem-nos atrasados. Além disso, a ordem social e os costumes estabelecidos no período pós-descobrimento eram muito mais parecidos com a européia do que com a indígena ou com a africana, facilitando, assim, a assimilação do europeu ao povo e a nação que se formava lá. A população brasileira acabou , enfim, por criar uma identidade nacional que abrangeu ( e ainda abrange), segundo Darcy Ribeiro, o país inteiro. Não há, então, como considerar que algum estrato racial é mais evoluído ou superior que outro, pois não existem identidades étnicas diferentes para competir entre si.
A análise que fizemos nesse ensaio até então foi acerca do povo brasileiro se o considerarmos como um todo. A conclusão da não existência de intolerância racial só é válida para a parcela da população que é da matriz cultural brasileira e considera-se como tal( essa parcela é, de longe, a maioria. Mas isso não quer dizer que ao londo da história até hoje não existiram grupos que forjaram para si um nova identidade étnica e tal identidade tivesse princípios racista. Isso aconteceu, por exemplo, no século XIX quando a aristocracia cafeeira criou ideais de purificação de raças, favorecendo a imigração européia para o Brasil.
A intolerância existente na estrutura social brasileira é, na verdade, a de ricos contra pobres. A camada intolerante é são os descendentes sociais dos senhores de engenho, dos colonos escravizadores, dos bandeirantes, pessoas que procuravam tirar o máximo de seus corpos em benefício do lucro máximo. A raiva natural deles era estritamente por medo de lesão econômica por parte do subjugado: índios preguiçosos, negros fujões, escravos que cometiam suicídio ou infanticídio, etc. Todas restrições de ordem econômica. O senhor de engenho( no contexto da escravidão) teria raiva dos seus "trabalhadores" independente de sua raça. Além desse contexto de medo de lesão econômica, ainda há a natural superioridade implícita na relação senhor-escravo, que pode ter sido "herdada" para relação atual de empregador-empregado. Além desse fator, temos ainda um preconceito de escala entre o senhor de engenho e escravo, que pode ter evoluído para uma preconceito de contacto nos dias de hoje entre trabalhador e “senhor”. Tal contexto histórico é somado ainda é somado, nos dias de hoje, à associação que a maioria das pessoas fazem da pobreza (tal associação é, de certa forma, válida) com a maior probabilidade de crime. O preconceito contra o pobre, então, é hoje um misto de contexto histórico com medo de violência urbana.
Ilustraremos o exposto com um trecho da obra-prima “O Povo Brasileiro”, do professor Darcy Ribeiro: Acresce que aqui se registra,também,uma branquização puramente social ou cultural. É o caso dos negros que, ascendendo socialmente, com êxitonotório, passam a integrar grupos de convivência dos brancos, casar-se entre eles e, afinal, a serem tidos como brancos. A definição brasileira de negro não pode corresponder a um artista ou a um profissional exitoso.Exemplifica essa situação o diálogo de um artista negro, o pintor Santa Rosa,com um jovem,também negro,que lutava para ascender na carreira diplomática, queixando se das imensas barreiras que dificultavam a ascensão das pessoas de cor.O pintor disse,muito comovido:"Compreendo perfeitamente o seu caso, meu caro. Eu também já fui negro".
Como explicar, então, que os negros brasileiros ganham, em média, 50% menos que os brancos? Os negros só conseguiram a abolição da escravidão há cerca de 150 anos. Não poderíamos comparar a condição social desse grupo com a do grupo que já tem 511 de existência e, desde então, exerce dominação em relação aos outros grupos, dificultando ainda mais a sua ascensão econômica e social. Somando-se a isso ainda há aparecimento a economia global, que agrava a desigualdade, tornado ainda mais improvável a ascensão social do grupo referido.
Concluímos, que a identidade étnico-nacional brasileira, por si só, não apresenta mecanismos sociológicos de intolerância/segregação/hierarquização racial. Mas isso não quer dizer que os não-brancos não sejam alvos de preconceito no Brasil. Mas esse preconceito é ou de ordem econômica ou mesmo racial, mas de algum indivíduo não participante da identidade ético-nacional em formação brasileira, a qual idealizou Darcy Ribeiro.
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