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2 de agosto de 2010

Leitura gurizada

Vidros Embaçados

Chegou a vez de Rodaika, a representante feminina do Pretinho Básico, dar suas impressões sobre o inverno

Nessa última semana das férias de julho, Zero Hora convidou os integrantes do programa Pretinho Básico, da Rádio Atlântida, a contar suas lembranças do inverno, quaisquer que fossem, boas ou ruins. Rodaika fecha a série:

Primeiro foi um estrondo forte, depois um grito. Corri pelo corredor que ligava a sala da TV à cozinha, escorregando pelo piso de parquê com minhas meias grossas de lã. Uma nuvem de fumaça não permitia que eu enxergasse o que estava acontecendo, mas sabia que era grave.

Tinha só seis anos, mas aquela imagem, o cheiro que vinha com ela e o medo que eu senti nunca saíram da minha cabeça. Na cozinha estava minha mãe, meu irmão e a senhora que trabalhava lá em casa. No fogão, uma panela de pressão com o feijão que seria servido no almoço. Não deu tempo.

Era inverno, muito frio e os dias dali em diante seriam mais frios ainda. A explosão da panela de pressão feriu gravemente minha mãe – que num ato lúcido e heroico conseguiu livrar meu irmão das queimaduras. Mas o incidente causou mais do que isso. De repente a família se separou.

Eu já estava na primeira série, meu irmão na pré-escola. Fomos divididos entre as casas das duas avós, e o meu pai passou a ser uma figura distante. Estava completamente atordoado com a gravidade do estado da minha mãe, passando por várias cirurgias no hospital. Foi um choque pra todos.

A situação me deixou muito triste. Lembro da saudade que sentia da minha mãe, do meu pai, da nossa rotina. Da vontade que eu tinha de estar também na casa da outra avó e, assim, poder brincar com meu irmão.

Os dias foram passando e eu encontrando formas de aliviar a falta que a família reunida fazia. Da janela do quarto da vó Lúcia eu via lá longe, as montanhas, teoricamente próximas da casa da outra vó, a Maria. Já pela janela da sala eu via os prédios mais distantes, que ficavam do mesmo lado da nossa casa. Assim, passava as tardes entre as duas janelas na tentativa de me sentir mais próxima dos meus pais e do meu irmão.

Aí veio a descoberta: o frio lá fora e a minha respiração quente do lado de dentro faziam com que os vidros ficassem embaçados e, logo, eu passei a desenhar ali os meus desejos.

E lá ficavam os registros da minha saudade. Era só soprar quente e bem forte para eles aparecerem.

Mandava beijos pro meu irmão, fazia coraçõezinhos pra minha mãe e acertava as letras do nome do meu pai, que a vó ditava lá da cozinha. Naquela casa eu podia escrever e desenhar o quanto eu quisesse nos vidros embaçados.

Foram alguns meses assim. Colégio de manhã – pra onde eu ía sozinha toda orgulhosa enfrentando as seis quadras a pé e toda empacotadinha com touca, luvas, manta e polainas de lã.

À tarde, os vidros embaçados – que com o frio e a umidade daquele inverno tinham cada vez mais espaço pros meus sonhos disfarçados de desenhos. Sim, já não era mais só a saudade o motivo dos meus desenhos.

Lembro de, naqueles vidros, ter escrito sozinha meu nome inteiro direitinho pela primeira vez. Desenhava nossa casa que seguia lá esperando a volta da família. Adorava rabiscar os aviões que me levariam para lugares distantes quando eu fosse “bem grande”. E hoje lembro que naqueles vidros também desenhei muitos microfones, meu brinquedo preferido na infância. Dali mesmo, com a paisagem fria do inverno lá fora, eu podia entrevistar minha avó sempre com as mesmas perguntas: “Falta muito pra minha mãe sair do hospital, vó?”

“Será que o pai vem me ver hoje?”

Eu só queria que chegasse a hora de tudo voltar ao normal, mas no fundo também curtia muito poder rabiscar à vontade os vidros embaçados da casa da avó.

E assim se foi aquele inverno. O frio diminuiu, meu sopro já não era mais tão quente e, finalmente, minha mãe ficou boa e a família voltou pra casa. Aí eu cresci e descobri que os sonhos de menina que desenhei naqueles vidros embaçados poderiam virar realidade e me acompanhariam durante muitos anos.

Ah, os vidros embaçados... Fizeram das piores as melhores lembranças daquele inverno.

ZERO HORA

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