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2 de janeiro de 2014

Hipálage


Há uma construção sintática que, às vezes, parece o samba do crioulo doido. É a hipálage.

Os dicionários definem hipálage como um expediente retórico segundo o qual uma palavra ocupa numa frase o lugar que convém logicamente a outra que com ela mantém um vínculo semântico e gramatical.   Por exemplo: ao falar, em Os Lusíadas X, 2, em "abundantes mesas de altos manjares", Camões quer dizer, retoricamente, "abundantes manjares de altas mesas".

Quando fala em "apetite necrófago da mosca", Augusto dos Anjos, no poema "Cismas do destino", parte II, quer dizer que a mosca é que é necrófaga, e não o apetite. No Hino Nacional, há um verso que diz "ao som do mar e à luz do céu profundo". Na verdade, não é o céu que é profundo, mas o mar. Afinal, a profundidade é a verticalidade para baixo (o mar) e não para cima (o céu). O autor desse verso, Osório Duque Estrada, realizou uma hipálage: o adjetivo que deveria determinar um substantivo acabou determinando outro.

A HIPÁLAGE NA LITERATURA A hipálage ocorre com frequência na prosa impressionista, influência do movimento da pintura surgido na França, em 1874. Em Portugal, Eça de Queirós foi um dos maiores representantes do movimento, inspirado sobretudo em Flaubert, criando construções como "Uma alvura de saia moveu-se no escuro" ("Os Maias", Eça de Queirós), em vez da expressão "Alguém com uma saia branca moveu-se no escuro". Eça de Queirós tem muitas adjetivações formadas por hipálage, como nevoeiros moles, neve silenciosa, multidões doentias dos pinheiros, choupos desfalecidos, um peixe austero. (Fonte: Dicionário eletrônico de termos literários, Carlos Ceia)
A produção da hipálage


A hipálage é um processo psíquico, como a sinestesia, que é a correspondência entre sentidos ou sensações diferentes. "Música doce", por exemplo, é uma sinestesia em que a sensação acústica - música - se associa a uma sensação gustativa - doce. É por sinestesia que falamos em "voz grossa" ou que atribuímos ideia de coisa "gorda" a uma palavra como "maluma", ou damos cores (verbocromia) a determinados sons, como o negrume ao "u" (fúnebre, túmulo, catacumba, urubu) e a clareza ao "a" (claro, raro). A hipálage, no entanto, é mais complexa que a correspondência sinestésica de sensações, e não raro diz respeito à sintaxe e não apenas à semântica. É por hipálage que dizemos que o sapato não entra no pé (na verdade, é o pé que não entra no sapato). Também por hipálage, a moça que engordou diz que determinado vestido não cabe mais nela (na verdade, é ela que não cabe mais no vestido).
Não é apenas o deslocamento de um nome ou de um verbo que produz a hipálage; a permuta de casos e de funções sintáticas também pode caracterizá-la. Assim, uma expressão aparentemente errada, como "dar a luz a uma criança" (por "dar à luz uma criança") pode ser adequadamente justificada como uma hipálage popular. Tanto faz, portanto, dizer que o bebê foi dado à luz, quanto dizer que a luz foi dada ao bebê... A preferência que as gramáticas dão a uma das expressões ("dar à luz um bebê") não justifica a condenação da outra ("dar a luz a um bebê").
Não se confunda o uso de verbos causativos com a hipálage. Quando se diz que "cigarro emagrece", o verbo "emagrecer" está no sentido causativo, registrado nos dicionários, isto é, "emagrece"   significa não apenas "fica mais magro", mas também  "faz emagrecer". Da mesma forma, em "massas engordam", "engordam" significa  "fazem engordar".
Há  exemplos "carnavalescos" de hipálage na sintaxe popular, observáveis até mesmo na fala de pessoas cultas. Quando diz que "meu carro furou o pneu", o falante não quer dizer que seu carro  tenha realmente furado o próprio pneu... Quando dizemos que "Pedro quebrou o braço ao cair", não estamos querendo dizer que Pedro foi o autor da própria fratura. Quando se diz que "o tanque vazou o óleo todo", não se quer dizer que foi o tanque o autor da façanha. Outros exemplos: Cafu fez três cirurgias (foi o médico quem as fez). O jogador operou o septo nasal (foi o médico dele que operou).
Embora já se tenha falado nessas construções sintáticas em trabalhos linguísticos sobre topicalização (como o livro de Eunice Pontes, Sujeito: da sintaxe ao discurso. São Paulo: Ática/INL, 1986) não me consta que exista algum estudo específico de psicolinguística exclusivamente sobre a hipálage.
É pena
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