A Fundação Universitária para o Vestibular (FUVEST) é a instituição que elabora, realiza e corrige o vestibular da Universidade de São Paulo (USP), considerado um dos maiores vestibulares do país. Como já dissemos em outros textos, a prova de redação deste exame de entrada compõe a prova de Português da segunda fase que, neste ano, aconteceu no último domingo, dia 7 de janeiro. Hoje, portanto, analisaremos a proposta de redação da FUVEST 2018.
O tema da proposta de redação da FUVEST 2018 é muito atual e suscitou polêmicas ao longo de 2017 e o vestibular aproveitou essa discussão e fez a seguinte pergunta aos seus candidatos: “Devem existir limites para a arte?“.
Entre tantos debates, um dos mais polêmicos do ano de 2017 foi justamente sobre arte. Exposições como Histórias de Sexualidade, atualmente no MASP, em São Paulo, o Queermuseu, fechado em Porto Alegre após manifestações contrárias às obras ali expostas, o caso da menina levada pela mãe a uma exibição de um artista nu e outros casos suscitaram discussões, principalmente nas mídias sociais, sobre o que é considerado arte, a respeito de até que ponto o nu é arte e se crianças podem ser expostas a isso, se trabalhos artísticos podem criticar dogmas religiosos ou se isso seria desrespeito dentre outras coisas.
Desta maneira, os candidatos da FUVEST 2018 deveriam estar a par deste debate que ocorreu ao longo do ano passado e responder, com opiniões e argumentos sólidos, se devem ou não existir limites para a arte. Nesse sentido, para responder a pergunta do tema da proposta de redação, os candidatos deveriam ter em mente um conceito do que consideram arte, o que pensam sobre as funções da arte como um todo, o que acham sobre limites, o que seriam esses limites etc.
Colocando este tema na proposta de redação da sua segunda fase do ano de 2018, a FUVEST assume uma postura de querer fazer com que seus candidatos pensem e reflitam acerca deste assunto e também admite não ter medo de colocar como tema um assunto considerado tabu e polêmico por parte considerável da sociedade brasileira. O mesmo deveria ser feito pelos candidatos: não ter medo de polêmicas, pensar a respeito e se posicionar.
A proposta é composta por cinco textos na coletânea textual, todos verbais. O primeiro coloca a arte como representação da cultura, mas nem sempre representando o que é tido como belo e sensível; às vezes, a intenção da arte e do artista é chocar:
As obras de arte assumem a função da representação da cultura de um povo desde os tempos mais remotos da história das civilizações. É através delas que o ser humano transmite uma ideia ou expressão sensível. Contudo algumas obras de arte fogem do conceito de retratação do belo e do sensível, parecendo terem sido feitas para chocar e causar polêmicas.
A principal obra do escultor inglês contemporâneo Marc Quinn é uma réplica de sua cabeça feita com cerca de 4,5 litros de seu próprio sangue – extraído ao longo de cinco meses. Uma peça nova é feita a cada cinco anos, e elas ficam armazenadas em um recipiente de refrigeração especialmente desenvolvido para elas.
A obra do escultor inglês mencionada pelo texto é esta e esta menção tem como objetivo fazer os candidatos pensarem sobre a função e as metas de uma obra de arte, se essa peça é considerada arte pelos candidatos e o conceito de belo e sensível. O que é belo e sensível para um pode não ser para o outro, assim como o que choca alguém pode não chocar outra pessoa, o que é polêmico para alguém pode não ser para o outro.
A discussão acerca do nu na arte, no que se refere a presença da menina no caso do artista nu em que a mãe a levou para a amostra, sabendo de seu conteúdo, é um exemplo dessa subjetividade que a arte tem em sua essência. Talvez, para essa mãe, o nu é algo natural que deve ser tratado desta forma em sua família; já para outras famílias, o nu pode ser tido como um tabu, algo que deva ser escondido. Uma determinada mãe considerar isso errado quer dizer que nenhuma mãe pode considerar certo ou natural?
O segundo texto da proposta, por sua vez, cita o exemplo de um caso de uma obra de arte que criou polêmica em 2010 (ou seja, não é uma polêmica tão nova e recente assim) por usar urubus vivos:
Graças aos seus três urubus, a obra “Bandeira Branca” é o acontecimento mais movimentado da 29ª Bienal [2010]. No dia da abertura, manifestantes de ONGs de proteção aos animais se posicionaram diante da instalação segurando cartazes com dizeres que pediam a libertação das aves. Chegaram a ser confundidos com a própria obra. “Me entristece o fato de que apenas os animais estejam sendo ressaltados. Espalharam informações erradas sobre como os urubus estão sendo tratados”, lamenta Nuno Ramos. Na obra, os urubus estão cercados por uma rede de proteção e têm como poleiro várias caixas de som que, de tempos em tempos, tocam uma tradicional marchinha de carnaval. As aves tinham a permanência na Bienal autorizada pelo próprio Ibama, que, depois, voltou atrás, alegando que as instalações estavam inapropriadas para a manutenção dos animais. Denúncias e proibições à parte, a obra de Nuno Ramos ganha sentido e fundamentação apenas na presença dos animais. Sem eles, a obra perde seu estatuto artístico e vira mero cenário, já que os animais são seus principais atores.
Protetores dos animais, na época, criticaram o uso de animais e as condições de sua permanência na amostra e no trabalho do artista que, a princípio, teve a permissão do Ibama para expor os urubus, mas devido a polêmica, a autorização foi retirada e, sem as aves, para alguns, o trabalho ficou sem sentido.
O terceiro texto da coletânea relembra a exposição Queermuseu, promovida por um grande banco em Porto Alegre, que foi cancelada após manifestações de pessoas contrárias ao seu conteúdo. Grupos como o Movimento Brasil Livre (MBL) foram um dos mais atuantes nas críticas à amostra:
A exposição “Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”, realizada desde 15 de agosto no Santander Cultural, em Porto Alegre, foi cancelada após protestos em redes sociais. A mostra ficaria em cartaz até 8 de outubro, mas o espaço cultural cedeu às pressões de internautas. A seleção contava com 270 obras que tratavam de questões de gênero e diferença. Os trabalhos, em diferentes formatos, abordam a temática sexual de formas distintas, por vezes abstratas, noutras, mais explícitas. São assinados por 85 artistas, como Adriana Varejão, Candido Portinari, Ligia Clark, Yuri Firmesa e Leonilson.
Folha de S.Paulo. 10/09/2017. Adaptado.
O quarto texto da coletânea da proposta é um trecho da justificativa do Santander em relação ao cancelamento da exposição:
Nos últimos dias, recebemos diversas manifestações críticas sobre a exposição “Queermuseu – Cartografias da diferença na Arte Brasileira”.
Ouvimos as manifestações e entendemos que algumas das obras da exposição “Queermuseu” desrespeitavam símbolos, crenças e pessoas, o que não está em linha com a nossa visão de mundo. Quando a arte não é capaz de gerar inclusão e reflexão positiva, perdeu seu propósito maior, que é elevar a condição humana.Por essa razão, decidimos encerrar a mostra neste domingo, 10/09. Garantimos, no entanto, que seguimos comprometidos com a promoção do debate sobre diversidade e outros grandes temas contemporâneos.
https://www.facebook.com/SantanderCUltural/posts. Adaptado.
Em relação aos textos sobre o Queermuseu, os candidatos deveriam se questionar se consideram a exposição desrespeitosa com símbolo, crenças e indivíduos ou não, se pensam que a arte pode suscitar reflexão a partir de uma crítica ou de um questionamento e se o cancelamento e fechamento dessa exposição foi um caso de censura ou não. O Queermuseu estava em um local fechado, entrava quem queria; se eu não gosto ou não concordo com o conteúdo, basta eu não entrar ou ninguém deve ter acesso?
O quinto e último texto da coletânea traz uma citação de Solange Farkas, curadora geral do Festival de Arte Contemporânea do SESC desde 1983 e diretora da Associação Cultural Videobrasil desde 1991:
A arte é um exercício contínuo de transgressão, principalmente a partir das vanguardas do começo do século 20. Isso dá a ela uma importância social muito grande porque, ao transgredir, ela aponta para novos caminhos e para soluções que ainda não tínhamos imaginado para problemas que muitas vezes sequer conhecíamos. A seleção dos trabalhos dos artistas para a próxima edição do festival [Videobrasil], por exemplo, me fez ver que os artistas estão muito antenados com as diversas crises que estamos vivendo e oferecem uma visão inovadora para o nosso cotidiano e acho que isso é um bom exemplo.
Solange Farkas. https://www.nexojornal.com.br.
Este texto vai de encontro com o primeiro e resume os demais, pois cita mais uma função da arte: transgredir padrões, apontar novos caminhos e não apenas representar o que é tido como belo e sensível e, aos transgredir, a arte pode chocar e suscitar polêmicas.
Nesse sentido, a proposta de redação da FUVEST 2018, em seu todo, suscitou questionamentos e reflexões para seus candidatos acerca do tema proposto, dando exemplos de um passado recente e do presente e colocando em xeque convicções, crenças, ideologias e conceitos. Além do mais, por tabela, digamos assim, mandou uma mensagem: o vestibular vai discutir polêmicas, vai colocá-las em evidência e a escola também precisa fazer o mesmo, já que o vestibular não deixa de ser um espelho que reflete e refrata a escola como um todo.
Os candidatos, independentemente da posição sustentada nas dissertações-argumentativas, deveriam ter tomado cuidado com discursos extremistas, já que se trata de um tema polêmico. Embasar e alicerçar suas opiniões sem apelar era o principal ponto e, deste modo, a FUVEST testou a capacidade argumentativa de seus candidatos.
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