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17 de julho de 2018

HERANÇAS LINGUÍSTICAS

É frequente a discussão a respeito do emprego de estrangeirismos na língua pátria, mas não só os idiomas estrangeiros contribuem/contribuíram para enriquecer a língua portuguesa.
A Linguística Histórica e a Filologia se ocupam da evolução do idioma através dos tempos e estudam tanto a chamada “história externa” – que registra os eventos sociais, políticos, históricos que afetaram os idiomas, quanto a “história interna” – que dá conta das questões fonéticas, ortográficas, gramaticais da língua. E essas ciências caracterizam os idiomas que se ‘encontram’, que estabelecem contato, da seguinte forma:
  • substrato – idioma já existente na região, sobre o qual se estabelece o idioma do povo conquistador;
  • superstrato – idioma que se sobrepõe a outro, ao do povo conquistado;
  • adstrato – idioma que coexiste, num território, a outro já existente e que fornece contribuições constantes.
Na história do Brasil, a partir da colonização, temos então o tupi funcionando como substrato e o português como superstrato linguístico. Até o século 18, os dois atuaram como adstratos, mas, em 1757, o Marquês de Pombal proibiu que se falasse outro idioma que não fosse o português, além de ter expulsado os jesuítas de todo o território português e das colônias, em 1759.
Os responsáveis pelo estudo e pela difusão do tupi entre os colonos europeus inicialmente foram os jesuítas, que se empenharam em aprender o idioma para poderem evangelizar os indígenas na própria língua destes. Padre Anchieta escreveu diversos textos, poemas e autos de cunho religioso no idioma indígena e chegou a organizar uma Gramática da Língua Tupi, para servir de referência aos colegas de batina no trabalho de catequese.
Mas, e atualmente, “Quem de nós não terá, por vezes, inquirido pelo significado de tantos nomes estranhos, cuja pronunciação já corre adulterada e cujo sentido já ninguém compreende? E são, todavia, vocábulos doces e sonoros, longos muitas vezes, excelentes em geral como designação de lugares, mas que muito perdem do seu valor por não se saber o que exprimem, o que recordam, o que nos revelam do sentir e do gênio do povo primitivo que no-los legou.”(SAMPAIO, Teodoro. O tupi na geografia nacional)
Assim é, como disse Teodoro Sampaio. Muitas vezes, no cotidiano, empregamos diversas palavras que são herança do tupi, sem nos darmos conta. Comemos mandioca, tapioca, pipoca, pitanga, goiaba… e um sem-número de peixes: sororoca, traíra, pirarucu, tambaqui, parati, mas nenhum pode ser pescado durante a piracema.
E a percepção indígena da topografia das regiões em que viviam é impressionantemente realista, é só atentarmos para o significado dos topônimos (nomes de lugares):
Aiuruoca (ayuru-oca) – refúgio dos papagaios (MG)
Anhembi (anhanbu-y) – rio dos nhambús (espécie de ave) (SP)
Araçatuba – onde há grande quantidade (tyba; mesmo sentido do sufixo –(z)al) de araçás (fruta semelhante à goiaba)
Araçoiaba (ara-açoyaba) cobertura ou anteparo, chapéu. Nomeava um morro isolado, por semelhança à copa de um chapéu arredondado (SP)
Araripe (ara-r-y-pe) – lugar onde nascem os rios (CE)
Baraúna (ibirá-una) madeira preta (RJ)
Buturuna / Voturuna (ybytr-una) morro negro (SP, MG)
Camaragibe (camará-g-y-pe) no rio do camará (espécie de arbusto) (PE, AL)
Camboriú (camby-ri-y) rio onde corre leite ou camui-ú, rio do robalo (SC)
Garopaba (igara-paba) local onde surgem as canoas (SC)
Ibiapaba (ybya-paba) terra erguida e aparada, planalto (CE)
Imbaçaí (mbeaçá-y) barra do rio, foz (BA)
Ipiranga (y-piranga) água vermelha (SP)
Ipojuca (yapo-yuc) água estagnada, banhado (PE)
Itaberaba (itá-beraba) pedra brilhante (MG)
Itabira (itá-bir) pedra que se levanta, serro empinado (MG)
Itatiaia (itá-tiãi) pedra denteada (MG, RJ)
Jacarepagua (yacaré-upá-guá) baixada ou vale dos jacarés (RJ)
Mantiqueira (amã-tykir) – a chuva cai aos pingos (alusão às condições climáticas da serra)
Maracanã (maracá-nã) semelhante ao maracá (chocalho), nome de uma espécie de papagaio (RJ)
Nhanduí (nhandú-y) rio das emas (MT)
Paraty (parati-y) rio dos paratis (peixe semelhante à tainha) (RJ)
Paquequer (pac-kér) a paca dorme, local onde as pacas se recolhem (RJ)
Paraguaçu (pará-guaçu) mar/rio grande
Pindamonhangaba (pindá-monhang – aba) lugar onde se faz anzol (SP)
Piauí (piau-y) rio dos piaus
Sassuí (çacy-y) rio dos beija-flores (MG)
Sorocaba (çoroc -aba) lugar de erosão (SP)
Tabatinga (taba-tinga) aldeia branca (AM)
Tamanduateí (tamanduá- ate-y) rio do caminho do tamanduá (SP)
Ubatuba (ubá-tyba) canoas em abundância (SP)

É claro que essa lista não esgota os topônimos ainda presentes no nosso cotidiano, não houve essa pretensão, nem há espaço para tanto. Apenas procurei exemplos bastante significativos dessa visão de mundo dos indígenas presente na nomenclatura, sem me concentrar no eixo Rio-São Paulo. Pode também haver divergências nas traduções, uma vez que as sociedades indígenas brasileiras eram ágrafas. Assim, o registro escrito podia variar, de acordo com a percepção auditiva dos colonizadores portugueses (como se fosse a brincadeira de telefone sem fio), o que acabava dando divisões diferentes entre os formantes dos vocábulos.

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