O que você sente pelo seu idioma? Será que é só uma sensação de uso, algo funcional como um ralador de queijo ou um descascador de legumes? Tenho certeza de que não; a sua e a minha sensação vão muito além. Diria que a sensação é muito próxima à do futebol, que, apesar da origem estrangeira, adotamos, reinventamos e se tornou motivo de orgulho nacional. Há na língua e no futebol um valor patriótico, são manifestações que nos unem e nos dão identidade.
Apesar de nossa sensação de conquista idiomática e predominância futebolística, há algumas regras que prosseguem iguais em todo o planeta e devemos acatar suas prescrições sem poder adaptá-las livremente à índole brasileira. Exemplifico: não é correto cobrar escanteio com a mão; é falta para cartão flexionar haver no plural em “houve dois jogos ontem”; é proibido o goleiro pegar a bola com a mão fora da grande área; colocar vírgula entre sujeito e verbo é impedimento. Apesar de todas as características brasileiras que dão cor à língua e ao futebol, devemos fazer nossas artes impondo alguns limites e em conformidade a algumas regras.
Essa noção fica bem declarada quando o assunto é colocação pronominal, algo que traz alta divergência entre os usuários lusitanos e os nacionais, pois o uso daqui já não se faz mais como o de lá. Já se atravessaram séculos e o entrevero continua por aí, impávido e colossal. Não vamos aqui pôr mais lenha na fogueira. Ao contrário, vamos trabalhar o assunto de olho nas questões de concursos públicos e dar atenção só ao que eles consideram errado. Em geral, a questão não foca os usos polêmicos, mas sim os erros universais.
A teoria sobre o tema pode ser vista ou como uma epopeia ou como um haicai. Tentaremos seguir a pequenez mínima da expressão com a grandeza máxima da mensagem. O assunto se resume à colocação do pronome pessoal átono ao redor do verbo. Como funciona a coisa? Siga as recomendações:
I- os pronomes em discussão são classificados em pronomes pessoais do caso oblíquo átono, ou simplesmente pronomes átonos: me, te, se, o, a, os, as, lhe, lhes, nos, vos.
II- eles sempre estão vinculados a um verbo e de acordo com a posição recebem a seguinte classificação: se vierem antes do verbo, a colocação chama-se próclise; se depois, ênclise; se no meio, mesóclise.
Próclise: A pessoa não se feriu.
Ênclise: A pessoa feriu-se.
Mesóclise: A pessoa ferir-se-á.
Além de ser um tema muito recorrente, observa-se que as bancas vão aos poucos abandonando a ortodoxia da regra e evitando as áreas discutíveis. Buscam focar o que é cabalmente errado e não os pontos de divergências entre Brasil e Portugal. Isso aumenta a objetividade da análise e diminui o conteúdo teórico a ser estudado. Quatro são as regras que organizam os erros no concurso:
1 – não iniciar período com pronome átono
Quando o verbo está abrindo um período, não devem os pronomes átonos ser antepostos ao verbo. Sendo proibida a próclise, será feito uso da mesóclise ou da ênclise. Exemplos: Diga-me toda a verdade. Recomenda-se cautela. Pedir-se-á silêncio. Nas provas, raramente esta regra é violada.
2- respeitar as palavras atrativas
Há palavras e expressões que exigem a anteposição do pronome ao verbo (confira a lista ao final do texto). Nasce, assim, o uso obrigatório da próclise graças às palavras atrativas. Exemplos: Não se faz isso. Aqui se canta, lá se chora. Sei que se alcançará o resultado desejado.
3- não pospor pronomes átonos ao particípio
O correto é analisar cada situação para observar o lugar adequado, mas nunca após o particípio. Exemplos: Tínhamos nos referido ao caso certo. Havia-me pedido algo impossível.
4- não pospor pronomes átonos aos verbos conjugados no futuro do indicativo.
A depender do caso, caberá a mesóclise ou a próclise, mas nunca após o futuro do indicativo. Exemplos: Não se queixará novamente disso. Ver-se-á o valor novamente. Sabemos que se reverterá a situação.
Detalhe
Na língua portuguesa a palavra “se” pode ser conjunção ou pronome átono e há situações em que ambos podem aparecer em uma mesma construção, cada um exercendo seu papel. Exemplos: Ele não sabia se se queixava comigo ou com você. Tudo ficará melhor se se dispuserem a ajudar. A mulher não conseguiu pensar se se mantinha calada ou gritava.
Trechos de provas
Acompanhe agora como a colocação equivocada aparece na prova. Todos os trechos a seguir apresentam um erro, por isso procure identificá-lo e atente-se a qual das regras se violou.
(ESAF) Não é conservando a Amazônia que resolverão-se os problemas ambientais da Terra.
(ESAF) Já que o novo sistema basearia-se na troca de mensagens entre instituições participantes…
(ESAF) Seria errôneo afirmar que nem o empenho maior do pensamento filosófico grego sujeitaria-se ao objetivo de querer trocar os limites do acaso pelo alcance da racionalidade.
(CESPE) Deveria-se nomear a imaginação comum de exigente, referindo-se à capacidade de superar os limites reais e de penetrar no mundo possível, do restrito campo individual.
(ESAF) Para Rodgers, um elenco importante é o que faz-se com o bolo depois que ele cresceu.
(ESAF) Para discutir os diversos aspectos relativos à cultura do amendoim, realizou-se um seminário, em meados de setembro, no qual procurou-se evidenciar as vantagens da rotação de culturas.
(ESAF) É direito do sócio desfazer-se de suas quotas, salvo nos casos em que haja previsão vedatória no contrato, e o administrador tenha mostrado-se negligente, agindo com culpa.
(ESAF) O que se espera é que as visões de Isabel sejam belas, conquanto ela tenha beneficiado-se de uma doação de córnea cuja identidade do doador não é sabida.
Questões de provas
A seguir, algumas questões de concurso sobre o tema colocação pronominal (gabarito ao final).
Em cada um dos itens abaixo é apresentada, em relação a trechos do texto, uma alternativa de colocação pronominal. Com base na prescrição gramatical, julgue (C ou E) cada proposta apresentada.
1. (CESPE) ( ) “Ambos se creem marcados” / Ambos creem-se marcados
2. (CESPE) ( ) “que os apartaria” / que apartá-los-ia
3. (CESPE) ( ) “Não se pode separar”’ / Não pode-se separar
4. (CESPE) ( ) “um e outro se irão fechando” / um e outro irão-se fechando
Os itens abaixo apresentam segmentos seguidos de reescrituras que contêm a substituição de expressões do segmento original por pronomes oblíquos. Julgue-os (C ou E) quanto à colocação e ao emprego desses pronomes.
5. (CESPE) “o conhecimento científico e tecnológico tem trazido importantes inovações e benefícios para a humanidade” / o conhecimento científico e tecnológico tem nos trazido para a humanidade.
6. (CESPE) “muitas doenças que permitiram o aumento considerável da expectativa de vida e o crescimento significativo da produção agropecuária” / muitas doenças que permitiram-no.
7. (CESPE) “aumentar a competitividade da economia e diminuir os desequilíbrios regionais” / aumentá-la e diminuí-los.
8. (CESPE) “de modo que possamos superar as ineficiências existentes” / de modo que as possamos superar.
9. (CESPE) “pode-se supor que a sociedade tecnológica seria caracterizada por um contexto no qual o trabalho passaria a ser uma necessidade exclusiva da classe trabalhadora”
Mantém-se a noção de voz passiva, assim como a correção gramatical, ao se substituir “seria caracterizada” por “caracterizaria-se”.
10. (CESPE) No trecho “e que se tornaram imperceptíveis no espaço homogêneo da escrita”, seria admissível, de acordo com o padrão escrito da língua portuguesa, a colocação do pronome “se” após a forma verbal “tornaram”.
11. (CESPE) “No universo unificador da mídia, os políticos não se destacam por sua experiência”.
A colocação do pronome “se” logo após a forma verbal “destacam” atenderia à prescrição gramatical.
12. (CESPE) “Nas nove partes de Tristes Trópicos, de Claude Lévi-Strauss, as reflexões sobre os índios brasileiros se concentram entre a quinta e a oitava partes do livro.”
A colocação do pronome após o verbo em “se concentram” desrespeitaria regra da língua padrão.
13. (CESPE) “O técnico de enfermagem Jorge Ricardo Pontes, com o objetivo de me fazer sentir mais segura, segurou a minha mão durante todo o exame.”
Em “com o objetivo de me fazer”, por não haver um elemento de atração que exija a próclise, a norma culta escrita recomenda o uso do pronome enclítico: “fazer-me”.
14. (CESPE) Reforça-se a ideia de possibilidade, coerente com a argumentação desenvolvida no texto, e mantém-se sua correção gramatical, ao se utilizar, em lugar de “Pode-se dizer”, o tempo verbal de futuro do pretérito, da seguinte forma: “Poderia-se dizer”.
15. (CESPE) “Tratarei a mim mesmo como um objeto.”
A função sintática exercida por “a mim mesmo”, em “Tratarei a mim mesmo” corresponde a me e, por essa razão, também seria gramaticalmente correta a seguinte redação: “Tratarei-me”.
16. (CESPE) “Atualmente fala-se muito em descarbonizar a matriz energética mundial.”
A mudança de posição do pronome átono em “fala-se” para antes do verbo desrespeitaria as regras de colocação pronominal da norma culta brasileira.
17. (ESAF) “Recentemente me pediram para discutir os desafios políticos que o Brasil tem pela frente.”
A posição do pronome átono “me”, antecedendo o verbo, constitui uma violação às regras da colocação pronominal da norma culta e, por isso, ele deveria ser usado posposto a “pediram”.
18. (ESAF) “Antes de recorrer à Justiça comum, o contribuinte pode-se defender em duas instâncias da esfera administrativa”
A expressão “pode-se defender” admite a colocação “pode defender-se”.
19. (ESAF) Em “Na gíria dos fiscais ele se chama ‘importabando’…”, o pronome átono também poderia vir enclítico ao verbo.
20. (ESAF) “Na infinita negociação que é viver, se sairá melhor aquele que possuir uma sólida conta corrente de reservas emocionais e de bom senso do que aquele que confia apenas em sua coleção de cartões de plástico.”
Devido ao emprego da vírgula, mantém-se a coerência textual e a correção gramatical ao empregar o pronome átono depois do verbo em “se sairá”: “sairá-se”.
21. (ESAF) Marque o item sublinhado que represente impropriedade vocabular, erro gramatical ou ortográfico.
Há (A) tempos está em tramitação no Congresso proposta para reforma do sistema financeiro que concede independência plena ao Banco Central. São fortes as pressões para que a matéria seja aprovada ainda sob (B) o atual governo. A iniciativa contempla contradição insanável (C). Não existe fórmula política capaz de aumentar a independência do BC. Nenhuma agência governamental superaria-o (D) em matéria de liberdade. Atua independentemente (E) de qualquer controle externo. (Baseado em Josemar Dantas)
22. (ESAF) Quanto à norma culta, em relação aos termos grifados, assinale a opção correta.
Para que a intervenção governamental se justifique é preciso, primeiro, que se prove a existência de uma distorção que faça com que o mercado não aloque eficientemente os recursos. Segundo, que se pondere as alternativas para corrigir aquela distorção à luz de seus custos e benefícios.
Pode-se concluir pela adoção de medidas corretivas, e de que tipo devem ser, somente após esta análise. Dada a realidade brasileira, é provável que essas tendam a ser muito mais relativas à natureza da política econômica do que da política industrial. Esta última ainda precisa ser muito melhor embasada. (Adaptado de Cláudio Haddad)
a) Todas as ocorrências de “se” admitem mudança de colocação.
b) Em “se justifique”, a próclise do “se” está em desacordo com a norma culta.
c) Em “se prove”, a norma culta admite a ênclise do “se”.
d) Em “se pondere”, a próclise do “se” é facultativa.
e) Em “Pode-se”, a ênclise do “se” justifica-se por ser início de oração.
23. (ESAF) Julgue se ambos os trechos apresentam correção gramatical.
a) Atualmente, nas formulações de políticas de combate ao crime organizado se exige que sejam atacadas as causas do narcotráfico. / Atualmente, nas formulações de políticas de combate ao crime organizado exige-se que sejam atacadas as causas do narcotráfico.
b) Nas declarações aos jornais, o governo se comporta como se a venda das estatais pudesse se dar de modo independente do cenário econômico. / Nas declarações aos jornais, o governo comporta-se como se a venda das estatais pudesse se dar de modo independente do cenário econômico.
24. (VUNESP) A colocação pronominal está de acordo com a norma culta em:
(A) Se lavaram e saíram às pressas.
(B) Ele sabe que todos receber-me-ão com alegria.
(C) Eu não direi-lhe o que aconteceu.
(D) Ao dirigir-me a palavra, baixou os olhos.
(E) Ele sempre afirma que fala-me a verdade.
25. (VUNESP) Assinale a alternativa correta quanto à colocação pronominal.
(A) O cigarro, quem consome-o, corre risco de vida.
(B) Onde estudaram-se as doenças respiratórias?
(C) O cigarro traz problemas que não resolvem-se facilmente.
(D) Tudo diz-se a respeito das ações tóxicas do cigarro.
(E) Ninguém se conscientiza dos malefícios do cigarro.
26. (VUNESP) A colocação dos pronomes obedece às prescrições da língua culta escrita na alternativa:
(A) Quem não lembra-se do que o grupo RPM significava na década de 80? Muitos embalaram-se ao som de suas melodias.
(B) Me desculpem a franqueza, mas ninguém comportou-se bem durante o espetáculo.
(C) Ainda fala-se em elevar o salário mínimo a mais de 200 reais, mesmo tendo mostrado-se impossível qualquer acordo nesse sentido.
(D) Caso se preparassem para suas novas tarefas, todos sairiam-se bem, realizando-as com perfeição.
(E) Dar-se-á ao pedido a solução que se mostrar mais justa, podem estar certos disso.
27. (VUNESP) Assinale a alternativa correta quanto à colocação pronominal.
(A) Quase ninguém lembrava-se de que o partido tinha realizado os expurgos.
(B) O ministro da defesa tinha comprometido-se a rever os cálculos iniciais.
(C) A oposição perderia-se, mais tarde, em discussões sobre o óbvio.
(D) Uma alternativa que pode-se dizer eficiente é o motor bicombustível.
(E) Gabriel Garcia Marques não se repetiu, depois que ganhou o prêmio Nobel.
GABARITO
1-C 2-E 3-E 4-E 5-E
6-E 7-C 8-C 9-E 10-E
11-E 12-E 13-C 14-E 15-E
16-E 17-E 18-C 19-C 20-E
21-D 22-E 23-ambas corretas
24-D 25-E 26-E 27-E
LISTA DAS PALAVRAS ATRATIVAS
a) palavras com sentido negativo: não, nunca, jamais, ninguém, nada, nenhum, nem, etc. Exemplo: Nunca se meta em confusões.
b) advérbios (sem vírgula): aqui, ali, só, também, bem, mal, hoje, amanhã, ontem, já, nunca, jamais, apenas, tão, talvez, etc. Exemplo: Ontem a vi na aula.
Com a vírgula, cessa a atração: Ontem, vi-a na aula. Aqui, trabalha-se muito.
c) pronomes indefinidos: todo, tudo, alguém, ninguém, algum, etc. Exemplo: Tudo se tornou esclarecido para nós.
d) pronomes ou advérbios interrogativos (o uso destas palavras no início da oração interrogativa atrai o pronome para antes do verbo): O que ? Quem ? Por que ? Quando ? Onde ? Como ? Quanto ? Exemplo: Quem a vestiu assim?
e) pronomes relativos: que, o qual, quem, cujo, onde, quanto, quando, como. Exemplo: Havia duas ideias que se tornaram importantes.
f) conjunções subordinativas: que, uma vez que, já que, embora, ainda que, desde que, posto que, caso, contanto que, conforme, quando, depois que, sempre que, para que, a fim de que, à proporção que, à medida que, etc. Exemplo: Já era tarde quando se notou o problema.
g) em + gerúndio
Deve-se usar o pronome entre “em” e o gerúndio. Exemplo: Em se tratando de corrupção, o Brasil tem experiência.
h) orações optativas (são as que exprimem desejo). Exemplo: Vá pela sombra! Deus os abençoe! Raios o partam!
Observação — No caso de haver infinitivo, o pronome pode ir para depois do verbo, mesmo havendo palavra atrativa; é uma situação facultativa.
Confirmei o horário para não me atrasar.
Confirmei o horário para não atrasar-me.
Em tempo1 — Recomenda-se a leitura do conto “O Colocador de Pronomes”, de Monteiro Lobato (faz parte da obra “Negrinha”).
* É oportuno lembrar a frase atribuída a Jânio Quadros: “fi-lo porque qui-lo”. Parece estranho dizer que algo tão encaixado e consagrado esteja com falha de colocação pronominal por não respeitar a palavra atrativa “porque”. A forma correta seria “Fi-lo porque o quis”.
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