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20 de novembro de 2017

“A linguagem / na ponta da língua, / tão fácil de falar / e de entender"


Este texto está sendo escrito antes da prova do Enem, embora só vá ser publicado depois dela, mas o mote escolhido é um dos assuntos que sempre marca presença em questões desse exame.
Outra prova que tem uma certa ‘quedinha’ pelo assunto é a da Unesp, mas a Fuvest (vestibular da USP) também cobra domínio sobre esse assunto. Vejamos uma música que serviu de base para questões há alguns anos:
Cuitelinho

Cheguei na bera do porto
Onde as onda se espaia.
As garça dá meia volta,
Senta na bera da praia.
E o cuitelinho não gosta
Que o botão da rosa caia.

Quando eu vim da minha terra,
Despedi da parentaia.
Eu entrei em Mato Grosso,
Dei em terras paraguaia.
Lá tinha revolução,
Enfrentei fortes bataia.
A tua saudade corta
Como o aço de navaia.
O coração fica aflito,
Bate uma e outra faia.
E os oio se enche d´água
Que até a vista se atrapaia.
(Folclore recolhido por Paulo Vanzolini e Antônio Xandó.
BORTONI-RICARDO, S. M. Educação em língua materna. São Paulo: Parábola, 2004.)
E vejamos as questões cobradas a partir dela:
  • Fuvest:
b) Se a forma do verbo “atrapalhar” estivesse flexionada de acordo com a norma-padrão, haveria prejuízo para o efeito de sonoridade explorado no final do último verso? Por quê?
  • Enem:
Transmitida por gerações, a canção Cuitelinho manifesta aspectos culturais de um povo, nos quais se inclui sua forma de falar, além de registrar um momento histórico. Depreende-se disso que a importância em preservar a produção cultural de uma nação consiste no fato de que produções como a canção Cuitelinho evidenciam a:
  1. recriação da realidade brasileira de forma ficcional.
  2. criação neológica na língua portuguesa.
  3. formação da identidade nacional por meio da tradição oral.
  4. incorreção da língua portuguesa que é falada por pessoas do interior do Brasil.

  5. padronização de palavras que variam regionalmente, mas possuem mesmo significado.
  • Unesp: De outro exemplar do cancioneiro popular, “Saudade de minha terra”:
De que me adianta viver na cidade,
Se a felicidade não me acompanhar?(…)
Tô aqui cantando, de longe escutando,
Alguém está chorando com o rádio ligado.
Que saudade imensa, do campo e do mato,
Do manso regato que corta as campinas.(…)
Eu preciso ir, pra ver tudo ali,
Foi lá que nasci, lá quero morrer.
(Goiá em duas vozes – o compositor interpreta suas músicas. Discos Chororó. CD nº 10548, s/d.)
Tô aqui cantando, de longe escutando,” No verso destacado, a variante popular “tô”, além de ter sido empregada para caracterizar o teor da música sertaneja, desempenha também um papel na métrica do verso, que não aceitaria a forma “estou”. Explique o motivo pelo qual o compositor não empregou “estou”.
Podemos observar que o intuito dos exames passa ao largo do preconceito linguístico. Muito antes pelo contrário, reconhecem essas produções populares como exemplo da língua em uso, por falantes com pouca escolaridade (talvez), mas com talento na expressão do lirismo e no emprego da função poética da linguagem.
“Falar errado” não é um pecado mortal, é apenas uma consequência dos vários percalços pelos quais as pessoas podem ter passado ao longo da sua vida escolar (se e quando passaram pela escola) ou de uma escolha proposital do emissor, como fizeram vários escritores e compositores.
É necessário, porém, que todos exercitem a empatia e o respeito ao próximo. E, no caso daqueles que dominam as diferentes variantes, devem empregá-las de acordo com a situação, pois Drummond dizia sobre a linguagem: “A linguagem / na ponta da língua, / tão fácil de falar / e de entender.(…)” e que o Português são dois. Já os linguistas afirmam que o Português são muitos!

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