QUE JEITO?
- Não gosto desse teu jeito, diz o menino de dezoito anos, entrando no apartamento.
- Boa noite pra você também, responde a mãe, que dançava na sala, treinando para a apresentação de fim de ano de dança holística.
O rapaz vai para seu quarto e fecha a porta com força.
- Preferia me ver chorando pela casa? Grita a mãe, desligando o som, e parando a dança, humilhada.
A mãe confere o figurino do evento, evitando a raiva, e toma um banho longo, depois sai para as compras, entra no mercado, farmácia, Pet Shop, volta pra casa cheia de embrulhos, logo a campainha toca, é o entregador de compras. A mãe agradece e recebe os legumes, verduras, frutas, arroz, feijão, sucos, sabonetes, alho, óleo, leite, ovos, farinha, creme de leite, leite condensado, fermento, carne, frango, etc.
A mãe põe a mesa, acende a luz da sala porque escurece. Então chama o filho, uma, duas, três vezes. Abre a porta do quarto, ele está ligado no computador, não olha pra ela, diz:
- Tô indo.
Ela desiste de esperá-lo, e para não criar caso, janta sozinha, pega a sobremesa, come, tira os pratos da mesa, lava todos, coloca a comida que sobrou em potinhos e guarda na geladeira.
Depois tranca-se em seu quarto, põe um DVD de dança holística e fica olhando, tentando memorizar os movimentos sem fazê-los. Ouve a voz do filho falando no celular, alegremente. Ri muito e combinam coisas.
A mãe sai do quarto, enche o regador e molha as plantas, limpa as duas gaiolas de passarinhos, separa água para o aquário, faz contas, prende boletos, cheques e post its com um clips grande e coloca na caixa de madeira, onde guarda os pagamentos.
Tira as roupas do varal, dobra, separa calças de casacos, roupas de baixo, deixa as que precisam ser passadas a ferro em cima da máquina, e leva para os armários as que já podem ser guardadas. As do filho, leva para o quarto dele, dá três batidinhas na porta, entra e coloca as roupas no armário, camisas no cabide, cuecas e meias na gaveta, aproveita e arruma um pouco a bagunça. Que bagunça, diz. O filho não responde, ela olha para ele. O rapaz continua falando, talvez pelo skype, talvez pelo celular, o certo é que fala muito, e rindo, diverte-se. O som é uma música desagradável, a mãe observa o filho. Raramente se vêem. A mãe sai, ignorada, fecha a porta e vai para a cozinha.
A mãe faz pipocas no microondas, pega um DVD e esparrama-se no sofá da sala. O filme é interessante, um documentário sobre danças circulares, que diz, enquanto exibe imagens de dançarinos: “Você pode descobrir que através da sutileza dos gestos e movimentos corporais há possibilidades para criar, inovar e transformar o seu estilo de vida. A mãe está absorta, completamente envolvida pela maravilha do tema e das cores, ouve ao longe uma voz perguntando: Cadê o jantar? A mãe enche a mão de pipocas e come, lambuzando os beiços de sal. O filho pergunta de novo e de novo e de novo e então grita: Cadê o jantar???
A mulher olha para aquele moço desconhecido, assustada: Quem é você? Ela pergunta, levantando-se tão rápido que as pipocas caem no chão espalhadas. Ei, não tem jantar? Pergunta ele, com a voz mais baixa. Ela grita SOCORRO e sai correndo pelo apartamento. Sou eu, ele diz, com os olhos arregalados, seu filho, o Rodrigo, ficou maluca? SOCORRO! Ela grita e repete SOCORRO, e berra, os vizinhos chegam, e o rapaz é retirado do apartamento para que ela se acalme. Ela se acalma. O pai do Rodrigo é chamado, muitos adultos conversam entre muitas portas fechadas, mas a mulher é irredutível: não conhece este rapaz que invadiu a sua casa.
Depois de tirarem Rodrigo do apartamento, consultarem psiquiatras e advogados, a família decide deixar a mulher sozinha por uns tempos, Rodrigo é levado contra sua vontade para a casa do pai, que tem outra mulher e outros filhos pequenos, cada um com seu quarto, seu computador e sua televisão em frente à cama. Rodrigo tenta telefonar para a mãe, mas ela reafirma que é engano, que não sabe quem ele é. Rodrigo entra em profunda depressão e tem todo o apoio de seu pai.
A mulher separa o figurino do evento, toma um banho longo, depois sai para as compras, entra numa loja de conveniências e compra pão integral e sucos, e um maço de cigarros porque voltou a fumar, compra frutas e mais nada. Em casa, não faz janta, nem põe a mesa, liga o som bem alto, e labisca as frutas em pedaços enquanto dança pela sala vazia, treinando seus passos para a apresentação de fim de ano de dança holística.
A mulher experimenta o figurino, faz a maquiagem, penteia-se, arruma-se como se arrumará no dia da festa, tira fotos de si mesma e posta no Facebook, criando um evento e convidando amigos. Os amigos começam imediatamente a curtir. Ela ri, sozinha.
Que jeito?
Conto do livro Viver Sem, de Glória Horta, disponível no site Clube de Autores.
Gloria Horta
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