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20 de novembro de 2014

Faculdade de medicina da USP

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O canal Arte1 exibiu, ontem à noite, o filme Poesia, obra-prima do diretor coreano Lee Chang-Dong. O momento parece propício. Para quem não se lembra ou não conhece, trata-se da história de uma mulher, Mija, que, às portas da velhice, resolve se matricular em um curso de poesia. Para quê?, perguntam à personagem recorrentemente. “Porque gosto de flores e de dizer coisas estranhas”, responde ela, também recorrentemente.
O curso, descobre a personagem, serve para ensiná-la a olhar as coisas ainda não observadas ou observáveis: uma maçã, uma sala de aula, a primeira infância, o rosto da irmã quando criança, as luzes da rua, e a própria rotina, encalacrada num apartamento de subúrbio onde cuida do neto, um jovem desinteressado e desinteressante que denota insolência até quando enche a boca para rir dos programas mais idiotas na tevê.
Envolta em uma vida sem graça e ordinária, Mija não demoraria a fazer coro ao que Manoel de Barros, poeta mato-grossense morto na última semana, dizia sobre a (in)utilidade de se compreender a poesia como tal: “Entender é parede. Procure ser árvore”.
Bem que a personagem tentou, mas a vida real tinha outro recado para ela: a vida não é apenas o embate de olhares, um jogo de colorir luzes foscas a partir do olhar, do artista e da obra de arte. É o embate entre a destruição consentida e a não-consentida. No filme, a vida real, concreta, fosca e de violência latente começa a mostrar os dentes quando descobrimos que aquele menino desinteressado e desinteressante era cúmplice em um caso de estupro coletivo em sua escola.
O crime coloca a avó com um pé em cada mundo. Em um deles, a poesia, como a arte, existia para que a verdade não a destruísse, como preconizava o filósofo Friedrich Nietzsche. Em outro, a verdade, para não ser destruidora, precisava ser ocultada e reinventada. Para isso não havia versos, mas dinheiro, recolhido pelos pais dos outros alunos acusados no crime para calar a família da vítima e salvar a todos, a começar pela reputação da escola. Neste mundo de janelas escancaradas, o dinheiro compra tudo, inclusive o silêncio e a dignidade.
Qualquer semelhança com a vida real não é mera coincidência. No dia em que Manoel de Barros morreu, e com ele um certo desaforo do chão em ser observado de azul, soubemos, pela internet, que o chefe de uma comissão sobre abuso sexual na Faculdade de Medicina da USP, Paulo Saldiva, pedira afastamento do grupo e da universidade. A decisão aconteceu após audiência pública na Assembleia Legislativa paulista em que foram relatados oito casos de violência dentro da USP, entre os quais dois estupros em festas organizadas pelos próprios estudantes, além de inúmeros casos de discriminação racial e sexual. Esse conflito entre imagem revelada e imagem ocultada começou a ser escancarado graças ao trabalho de apuração dos repórteres Igor Ojeda e Tatiana Merlino no coletivo A Ponte (leia mais AQUI)
Na audiência, a faculdade foi acusada de se omitir na apuração dos fatos, relatados desde 2011, para preservar a sua imagem.
À saída, Saldiva vaticinou: “Se os médicos, os alunos e todos os profissionais de saúde não souberem se respeitar, vai ser difícil ‘mudar a chave’ e tratar melhor o paciente”. Quem se acostumou a ser tratado como saco de batata em corredores de hospitais sabe do que ele está falando.
A desistência, àquela altura, deixava claro quem vence o embate em um país que se nega a lidar com o próprio presente, como atesta o cinismo dos envolvidos no caso da universidade, e com o próprio passado, como atestam as resistências sobre os trabalhos das comissões da verdade sobre a ditadura civil-militar - para ficar apenas em um exemplo. Em um caso como o outro, a história é construída na base dos panos quentes. Não é estranho, portanto, que o contraditório seja violentado até em marchas das famílias pela suposta liberdade. A ignorância é apenas a patente mais visível de nosso cinismo fundador: o que constrói a reputação de pessoas de “bem” – os que pagam advogados para abrilhantar consciências, reputações e silêncios.
No filme, a transcendência buscada pela personagem é estraçalhada pelos cadeados e âncoras cravados no chão. Mas o chão, escreveu Manoel de Barros, não quer ser olhado por pessoas razoáveis. Quer ser olhado de azul. O risco, por aqui, é tropeçar em reputações envernizadas e cadáveres insepultos.

MATHEUS PICHONELLI 

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