Há algumas semanas, tomei coragem e iniciei a leitura do livro D. Quixote, cujo título original é “O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha”, de Miguel de Cervantes Saavedra, escrito no início do século XVII.
O livro que tenho foi editado pela Editora Nova Aguilar em papel-bíblia, com letras pequeníssimas, e, mesmo assim, conta com novecentas e noventa e uma páginas, das quais já li duzentas e cinquenta. A coragem a que me refiro não é só pela extensão da obra, mas pela linguagem usada, bastante apurada e, em diversos trechos, de difícil compreensão. Bem diferente da que encontramos nos romances modernos, nos quais o que mais importa é a história, o enredo em si. Os clássicos – e D. Quixote é um clássico – não. Esses, além de se preocuparem com o enredo, preocupam-se, e muito, com o esmero da linguagem.
Se as escolas se ocupassem com a leitura dos livros clássicos, a cultura dos brasileiros seria mais requintada e haveria mais facilidade de compreensão e de produção de textos, os grandes verdugos dos estudantes em geral desde a mais tenra infância até as salas de pós-doutorado.
O brasileiro não gosta de ler, dizem. O brasileiro não sabe escrever adequadamente, dizem também. O problema, acredito, está exatamente na falta de treinamento com textos bem escritos. A prática leva à perfeição; quanto mais se lerem os clássicos, mais se habituará ao refinamento da linguagem. Quem lê bastante, pensa bem; quem pensa bem, se comunica melhor e não estranha frases como a seguinte, retirada de D. Quixote:
- “Escreva-a Vossa Mercê duas ou três vezes aí no livro, e dê-mo, que eu o levarei bem guardado”.
Nem o Word entendeu o que escrevi; há um grifo vermelho sob o trecho “dê-mo”, o que significa que para o Word a frase está errada, mas está adequada ao Português padrão. Vamos à explicação?
A expressão “dê-mo” é a junção do verbo “dar” no imperativo afirmativo (ordem, pedido ou conselho – para a terceira pessoa – Vossa Mercê, “antigo tratamento dado a pessoa de cerimônia, contraído em vossemecê, vosmecê, você, etc.”, segundo o dicionário Aurélio) com os pronomes “me” e “o”: “mo”; “dê-mo” é a forma adequada ao Português padrão, mas, com a falta de cultura que assola o Brasil, hoje se ouvem as formas inadequadas “dê-me ele”, “dá-me ele” ou ainda “me dê ele”, “me dá ele”. Os pronomes “ele, ela, eles, elas”, porém, só podem ser usados como sujeito ou antecedidos de preposição (de, a, em, por...). Quando não exercerem a função de sujeito nem estiverem antecedidos de preposição, e exercerem a função de objeto direto, o complemento de um verbo que não exige preposição, chamado de verbo transitivo direto, devem ser substituídos por “o, a, os, as”. Sancho, o escudeiro de D. Quixote disse a ele que lhe desse o livro. É inadequado dizer “dê-me ele”, como já vimos. No lugar de “ele”, deve-se usar “o”; e, quando se juntar “me, te, lhe, nos, vos, lhes” com “o, a, os, as”, ocorrerá a contração “mo, to, lho, no-lo, vo-lo, lho; ma, ta, lha, no-la, vo-la, lha, etc.” Por isso a forma “dê-mo”.
Observe mais esta frase:
- “Purgatório o chamas tu, Sancho? Inferno lhe puderas tu chamar mais apropriadamente, ou coisa ainda pior, se a há.”
Observe que Cervantes usou o pronome “a” ligado ao verbo “haver”. Este verbo não tem sujeito, pois significa “existir”, e é transitivo direto, por isso seu complemento não pode ser representado por “ele, ela, eles, elas”, e sim por “o, a, os, as”. É inadequada, então, a frase “Ela há”. Se for usado o verbo “existir”, deve-se dizer “Ela existe”: Existe coisa pior que isso? Ela existe! Se, porém, for usado o verbo “haver”, deve-se dizer “Há-a”: Há coisa pior que isso? Há-a!
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