GRAMÁTICA, VIDA E FLEXÕES
Se repararmos bem, a vida humana e a gramática fazem paralelo em inúmeras situações. Na vida, há pessoas que agem sempre em prol da comunidade. Por isso, nas suas tomadas de decisão, levam sempre em consideração o respeito ao próximo, relativizando suas ideias, aparando arestas, cedendo e revendo seus conceitos, visando sempre chegar a um denominador comum com seus pares. Em contrapartida, há os ensimesmados, os que veem a vida de forma unilateral, absolutos nas ideias, porque – como diz Caetano – “Narciso acha feio o que não é espelho”.
Com a gramática não é diferente. Vejamos, por exemplo, o caso da flexão nominal em que substantivos e adjetivos são capazes de cederem, modificando-se para concordarem entre si em gênero e número, e os casos de derivações em que os nomes se modificam apenas para se destacarem dos outros. Em “o povo sábio unido jamais será vencido”, há concordância entre o substantivo “povo” e seus pares “sábio”, “unido” e “vencido”, mas em “o povo sapientíssimo unido jamais será vencido”, o grau superlativo absoluto sintético “sapientíssimo” difere dos outros elementos para atribuir uma qualidade elevada ao substantivo “povo”.
O interessante, nesse paralelo, é perceber quão descartável é tudo aquilo que vive isolado da sua comunidade. Quem se isola e vive olhando para o próprio umbigo não faz falta a ninguém, da mesma forma que o grau atribuído a uma classe gramatical para singularizá-la também é prescindível. É possível conviver pacificamente com todos os gêneros sociais em qualquer número, mas só até o momento em que uma das partes não se exalta diante da outra. A harmonia entre os termos de uma frase se faz justamente porque há nesses termos a capacidade de cederem para concordarem. Em “ o povo unido jamais será vencido” podemos perceber a ausência do morfema “s”, que só entrará em cena se o substantivo e todos os seus parceiros forem para o plural. Já em “sapientíssimo...”, o adjetivo “sapiente” agrega a si o sufixo “-íssimo”, ou seja, um substantivo ou um adjetivo não cedem para se graduarem, ao contrário, acrescentam para se graduarem e se graduam para se destacarem. Por isso, a única forma de uma palavra se graduar é não concordando com as outras, e só há concordância onde se é capaz de ceder. Flexão é solidariedade, derivação é soledade. Ser flexível é viver em sociedade e perpetuar a vida, ser ensimesmado é viver ilhado em uma autofagia finita.
Mas, se na gramática não há concordância do número e do gênero com o grau, na sociedade vislumbro uma possibilidade. É possível alguém ser graduado e viver em concordância com os outros gêneros sociais. Para isso, é preciso flexibilizar-se, abster-se dos superlativos que o distanciam do homem comum; dessufixar-se e desinenciar-se para relativizar as regras e horizontalizá-las; ter envergadura suficiente para mirar com bons olhos o que tem a seus pés. Quem sabe assim possamos realizar, na vida, um feito impossível no âmbito gramatical, que é concordarmos em gênero, número e grau, possibilitando a frase “O povívissimo, sapientíssimo unidíssimo, jamaisíssimo será vencidíssimo”.
Q VC DISSE?
Depois de muita relutância, decidi criar uma identidade no tal facebook. Não aguentava mais ouvir e não entender os meus alunos dizendo que mandariam o trabalho via “face”, perguntando se eu tinha visto a página tal, o comentário de não sei quem... E lá fui eu criar um perfil, como se não tivesse mais nada para fazer (naquele dia, eu realmente não tinha).
Minha primeira interação foi com a Carol, uma aluna que mandou a seguinte mensagem: “Oi, prof! Td blz?” Minha resposta foi outra pergunta: “Oi?” Do que ela estava falando? “Prof.” eu até entendi... Mas, o que era “Td” e “blz”? Carol só disse:”OMG! rsrs”. Tudo bem, amanhã vejo isso.
O assunto do dia seguinte era: Siglas e Abreviaturas. Comecei a aula explicando a importância que elas têm na comunicação escrita e também na falada, por conferir economia de letras ao enunciado e facilitar a comunicação entre diferentes línguas. Dei os exemplos clássicos como ONU, já que todos conhecem. Nem todos conheciam. Carol foi a primeira a perguntar o que era aquilo. Patrícia (Paty, como gostava de ser chamada) logo disse que também nunca havia escutado isso. Como assim? Algo tão importante como a ONU não era conhecido? Segui a aula falando das abreviaturas. Dei outros exemplos, clássicos também, como “masc.”, “fem.”, “admin.”... Só o último Paty conhecia. Falou que aparecia no “face”. Ah! O “face”! Lembrei do que Carol falou ontem e não consegui me segurar, fui no automático: “Carol, o que foi aquilo que você me disse ontem?”
Todos riram. Não achei graça. Acho que ela já tinha espalhado a notícia. Mesmo assim, não via motivo para o riso. Jorge, que se mostrava o mais compreensivo entre os colegas, falou: “É a economia, professora!” “Hã?” “É que, quando falamos também usamos siglas e abreviaturas para o texto não ficar muito grande. É comum. A professora não sabia porque fugia da internet. Agora, já sabe. Viu? Também podemos ensinar algo!” E deu aquele sorriso maroto.
Quando cheguei a minha casa, abri o facebook. Vi uma mensagem do Jorge: “É q qnd falamos por aqui, tbm usamos siglas e abrev. p/ o texto ñ ficar mto grd. É comum. A prof ñ sabia pq fugia da net. Agr, já sabe. Viu? Tbm podemos ensinar algo! rsrsrsrsrs”
A lição que tirei disso? De que adianta teoria se não a usamos na prática cotidiana?
Nenhum comentário:
Postar um comentário