Além dos seres vivos e da matéria cósmica, existem, também, coisas
culturais, muitíssimo mais complicadas. Chama-se cultura tudo o que é feito pelos
homens, ou resulta do trabalho deles e de seus pensamentos. Por exemplo, uma
cadeira está na cara que é cultural porque foi feita por alguém. Mesmo o
banquinho mais vagabundo, que mal se põe em pé, é uma coisa cultural. É cultura,
também, porque feita pelos homens, uma galinha. Sem a intervenção humana, que
criou os bichos domésticos, as galinhas, as vacas, os porcos, os cabritos, as cabras,
não existiriam. Só haveria animais selvagens.
A minhoca criada para produzir humo é cultural, eu compreendo. Mas a
lombriga que você tem na barriga é apenas um ser biológico. Ou será, ela também,
um ser cultural? Cultural não é, porque ninguém cria lombrigas. Elas é que se
criam e se reproduzem nas suas tripas.
Uma casa qualquer, ainda que material, é claramente um produto cultural,
porque é feita pelos homens. A mesma coisa se pode dizer de um prato de sopa, de
um picolé ou de um diário. Mas estas são coisas de cultura material, que se pode
ver, medir, pesar.
Há, também, para complicar, as coisas da cultura imaterial, impropriamente
chamadas de espiritual - muitíssimo mais complicadas. A fala, por exemplo, que
se revela quando a gente conversa, e que existe independentemente de qualquer
boca falante, é criação cultural. Aliás, a mais importante. Sem a fala, os homens
seriam uns macacos, porque não poderiam se entender uns com os outros, para
acumular conhecimento e mudar o mundo como temos mudado.
A fala está aí, onde existe gente, para qualquer um aprender. Aprende-se,
geralmente, a da mãe. Se ela é uma índia, aprende-se a falar a fala dos índios, dos
Xavantes, por exemplo. Se ela é uma carioca, professora, moradora da Tijuca, a
gente aprende aquele português lá dos tijucanos. Mas, se você trocar a filhinha da
índia pela filhinha da professora, e criar, bem ali na praça Saens Peña, ela vai
crescer como uma menina qualquer, tijucana, dali mesmo. E vice-versa, o mesmo
ocorre se a filha da professora for levada para a aldeia Xavante: ela vai crescer lá,
como uma xavantinha perfeita - falando a língua dos Xavantes e xavanteando
muito bem, sem nem saber que há tijucanos.
Além da fala, temos as crenças, as artes, que são criações culturais, porque
inventadas pelos homens e transmitidas uns aos outros através de gerações. Elas
se tornam visíveis, se manifestam, através de criações artísticas, ou de ritos e
práticas - o batizado, o casamento, a missa - em que a gente vê os conceitos e as
ideias religiosas ou artísticas se realizarem. Essa separação de coisas cósmicas,
coisas vivas, coisas culturais, ajuda a gente de alguma forma? Sei não. Se não
ajuda, diverte. É melhor que decorar um dicionário, ou aprender datas. Você não
acha?
Cultura
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